quinta-feira, outubro 20, 2005

O dom de Lilo

Primeiro Acto

A Mãe está acamada e Lilo está ao pé dela, sentado na cama. Estão de mãos dadas e olham-se nos olhos.

MÃE
Vou morrer meu filho, chegou a minha hora. Tens que ser corajoso.

LILO
Mãe, por favor, não digas isso...

MÃE
Não chores, Lilo. Mais tarde ou mais cedo este dia tinha que chegar. Não tenhas pena de mim, tive uma vida muito preenchida, mas agora estou cansada, esta doença consumiu-me todas as reservas de energia que tinha. De resto, cansei-me deste mundo, anseio pela paz eterna.

LILO
Mas eu ainda preciso de ti, mãe.

MÃE
Pensas que precisas, mas não precisas, Lilo. Já te ensinei o pouco que sabia e está na altura de voares pelas tuas próprias asas.

LILO
Que devo eu fazer mãe?

MÃE
É isso mesmo que tens que descobrir: o que deves e queres fazer da tua vida. Essa é a tua primeira missão, o teu primeiro dever para comigo, e para contigo, quando eu tiver desaparecido.

LILO
Ainda não estou preparado, ainda não me sinto suficientemente esclarecido, preciso que fiques comigo mais uns tempos.

MÃE
Sabes bem que isso não é possível. Vais ter que arranjar uma namorada.

LILO
E como é que isso se arranja, mãe?

MÃE (Rindo, com um esgar de dor)
Não me faças rir, que eu não posso.

LILO (Aflito)
Não estará na hora de tomares o teu comprimido?

MÃE
Não quero mais comprimidos... Quero que me ouças, Lilo. Tenho procurado guiar-te na vida, mas vou morrer sem ter conseguido perceber para o que é que tens vocação. E isso entristece-me.

LILO
Se calhar não presto para nada. Já pensaste nisso?

MÃE
Não digas isso. Toda a gente tem algum préstimo, todos temos jeito para alguma coisa. Não há pessoa no mundo que não tenha um dom qualquer, mesmo se muita gente nunca chega a descobrir qual é. E é isso mesmo que tenho medo que te aconteça, Lilo, que não chegues a descobrir nunca a tua missão na terra.

LILO
Tu, ao menos, tens jeito para imensas coisas: cozinhar, coser, jardinar, tocar piano, dar aulas... toda a gente diz que eras uma excelente professora...

MÃE
Se era ou não, não sei, mas descobri muito nova que era isso que queria fazer. Sempre quis ser professora, ensinar aos outros o que eu própria fosse descobrindo. E, como acho que os primeiros anos da vida de uma pessoa são determinantes, quis ser professora primária para preparar os miúdos o melhor possível.

LILO
Foste muito boa nisso, mãe, toda a gente o diz.

MÃE
No entanto, não consegui ajudar o meu próprio filho a escolher o seu futuro.

LILO
Não digas isso assim, mãe, fazes parecer uma coisa muito dramática. Ninguém teve uma mãe mais maravilhosa do que eu.

MÃE
Obrigado, Lilo, és um bom filho... Tens que me prometer que vais procurar o teu dom. E que vais procurar fazer na vida aquilo que mais gostares. Não imaginas como é importante nós fazermos aquilo para que fomos talhados. Não viver toda a vida contrariados. Olha o teu tio António, por exemplo, é um infeliz, um desgraçado. É funcionário público há trinta e tal anos e detestou cada minuto que passou no trabalho. O que ele gostaria era de ter sido marceneiro, mas nunca teve a coragem de se despedir e montar a oficina com que sempre sonhou.

LILO
E se o meu dom fosse para vadiar? É o que eu mais gosto de fazer, mãe, andar por aí a encher os olhos com o espectáculo da vida. Não há nada que goste mais do que estar sentado numa esplanada ou num jardim a observar as pessoas. Ou as árvores, os pássaros, os prédios ou um lago... Tudo me delicia. Na praia, por vezes, devem pensar que sou maluquinho: passo a vida a maravilhar-me com os grãos de areia, com as formas das conchas, as cores das pedras...

MÃE
Estás a confundir as coisas, Lilo, e a deixar-me ainda mais preocupada (Lilo faz menção de dizer qualquer coisa, mas a mãe cala-o com um gesto, continuando a falar). Gostares do espectáculo da vida só prova como és sensível e esperto, mas ninguém é vadio por vocação, somente por estupidez ou distração. Se viemos a este mundo foi por alguma razão. Todos temos uma dívida para com o mundo, um dever a cumprir para com os nossos pais, irmãos, maridos, mulheres e demais pessoas. É por isso que gosto de chamar dom aquilo que outros chamam vocação. Pois quando somos bons nalguma coisa, temos o dever de o partilhar com os outros. Trata-se, efectivamente, de doar alguma coisa, ao mundo e aos nossos semelhantes.

LILO
Eu estava só a meter-me contigo, não te queria apoquentar. Eu prometo, mãe, que a partir deste momento, a minha prioridade é encontrar aquilo a que chamas o meu dom.

MÃE
Eu sei, Lilo. Sei como te eduquei. Quando encontrares o teu dom, terás encontrado o teu caminho. Ou vice-versa. Agora deixa-me dormir um bocadinho, porque esta conversa deixou-me esgotada.

Lilo dá um beijo carinhoso à mãe e sai do quarto.


Segundo Acto


Um pintor desenha ao ar livre. Lilo aproxima-se e fica a observá-lo durante alguns instantes. O pintor apercebe-se que está a ser observado e volta-se para ver quem é.

LILO
Que bem que o senhor desenha!

PINTOR (Interrompendo o seu trabalho)
Achas?

LILO
O quê? O senhor não acha que desenha bem?

PINTOR
Não, ainda não desenho bem. Mas estou a trabalhar para isso: para um dia poder vir a fazê-lo como deve ser. Como gostaria de o fazer. É por isso que todos os dias trabalho horas a fio. Conheces a história do cantor lírico americano?

LILO
Não, nunca ouvi. Como é?

PINTOR
Um americano chegou um dia a Itália, o país da ópera por execelência, convencido de que cantava muito bem. O sonho dele era cantar para o público de Milão, considerado o mais exigente do mundo no que respeita ao canto lírico. Tanto andou que lá conseguiu uma oportunidade, num concurso para amadores. A sala estava cheia e o americano cantou o melhor que sabia, com força, com entusiasmo. Quando acabou toda a gente começou a gritar «Bis! Bis!» e ele sentiu um grande orgulho. Cantou mais duas árias e, no fim, repetiu-se a cena, com toda a gente a pedir «Bis! Bis!» Cinco, seis, muitas vezes, sempre que acabava de cantar, as pessoas queriam mais. Até que, por fim, o americano, exausto, disse: «Vocês são um público maravilhoso, mas confesso que estou cansado, além de que se está a fazer tarde. Querem realmente que eu cante mais?». Então, um espectador da primeira fila levantou-se e disse: «Sim, tens que cantar até aprenderes a fazê-lo».

LILO (Rindo)
É uma história engraçada.

PINTOR
É a minha história. No fundo, é a história de todos os artistas que se prezam. Temos que praticar, praticar até aprender. Por mim, acho que muito poucos pintores chegaram alguma vez a desenhar bem. Os melhores de todos morreram quando começavam finalmente a sentir que estavam quase a chegar lá.

LILO
E que é feito do dom, no meio disso tudo?

PINTOR
Qual dom?

LILO
O dom para o desenho. Toda a gente sabe que há pessoas que nascem com o dom para o desenho. Já a minha mãe o dizia.

PINTOR
O que as pessoas chamam de dom para o desenho é na realidade um dom para o trabalho. É um dom muito humilde mas, com efeito, ou tens esse dom ou nunca chegarás sequer a saber segurar como deve ser no lápis ou no pincel.

LILO
E como é que uma pessoa sabe se tem esse dom ou não?

PINTOR
É fácil. Se começares a fazer rabiscos e não fores mais capaz de parar, é quase certo que tens esse dom. E quem diz desenhar diz cantar, escrever, ou até fazer candeeiros.

LILO
Também é preciso um dom para fazer candeeiros?

PINTOR
Claro. Para fazer candeeiros que façam realmente alguma diferença, que tragam realmente alguma luz ao mundo. (Ri) Para reproduzir o que já existe não é preciso dom nenhum, como é óbvio.

LILO
E você acha que traz algo de novo ao mundo?

PINTOR
Esse é, pelo menos, o meu grande objectivo. Provavelmente morrerei sem ter sabido se consegui fazer alguma diferença, mas ao menos terei tentado.

LILO
Admiro-o. Gostava de ser como o senhor. Gostava de saber qual é o meu dom. Acha que me pode ajudar nisso?

PINTOR
Tudo o que sei é que se queres saber mesmo qual é o teu dom, já estás no bom caminho. A não ser que estejas simplesmente a passar por uma fase, uma crise de crescimento. Se for esse o caso, isso passa-te. Se calhar até era melhor para ti não teres nenhum dom, seres apenas mais um palerma que anda para aí, a votar nas pessoas erradas e a dar importância ao que não tem interesse algum.

LILO
Como pode ser tão cruel?

PINTOR
Não queria ofender-te pequeno, mas na verdade não vejo o que posso fazer por ti, ou tu por mim.

LILO
Pelo menos, já aprendi uma lição hoje.

PINTOR
Ai, sim? E qual foi?

LILO
Pode-se desenhar muito bem, ter um verdadeiro dom para o desenho e não se ser boa pessoa na mesma. Pode-se ser um grande artista e ter mau feitio, ou mesmo ser uma pessoa ruim.

PINTOR (Rindo)
E ainda não sabias isso?

LILO
Não, não sabia. Estupidamente, pensava que quem criava coisas belas havia de ser bom e justo.

PINTOR
Ó filho estás enganado, há flores lindas no meio da merda.

LILO
Com efeito, esta conversa está a começar a cheirar mal. Boa tarde!

Lilo sai e o pintor recomeça a trabalhar.

Terceiro Acto

Sentado num banco de jardim, um padre lê a Bíblia. Lilo aproxima-se.

LILO
Boas tardes, padre.

PADRE
Boa-tarde, meu filho.

LILO
Importa-se que lhe faça companhia?

PADRE
Claro que não, por amor de Deus.

Lilo senta-se a seu lado. Pequeno silêncio.

PADRE
Querias talvez confessar-te?

LILO
Não é bem confessar-me, mas talvez pedir-lhe conselho. A verdade é que tenho uma missão, mas não sei por onde começar.

PADRE
Uma missão? E que missão é essa?

LILO
Tenho que encontrar o meu dom. Antes de morrer, a minha mãe disse-me que era a primeira coisa que eu devia fazer, depois de a ter enterrado.

PADRE
O teu dom? Que dom? Não estou a perceber.

LILO
Segundo a minha mãe, todos nós temos um dom, só que nem todos o encontraram ainda. Uns têm um dom para a matemática, outros para desenhar ou escrever. Outros ainda para serem médicos, polícias ou... padres.

PADRE
E tu não sabes qual é o teu? É isso?... A tua mãe tem razão: todos temos um dom, pode é não ser tão nobre como esses que estás a referir. Há quem tenha um dom para a costura ou para abrir poços, simplesmente. Eu, por exemplo, tenho um dom para sofrer.

LILO
Para sofrer?

PADRE
Sim, meu filho, foi por isso que me fiz padre. Sofro por todos os pecadores, por toda a humanidade.

LILO
Mas isso é horrível!

PADRE
Não, não é assim tão horrível como parece. Por mais incrível que isto te possa parecer, gosto de sofrer, encontro algum conforto no meu sofrimento. Esta minha missão, para falar como tu, faz-me sentir vivo e útil. Eu sofro pelos que não sofrem.

LILO
Haverá quem não sofra?

PADRE
Duvidas?

LILO
Eu sofro, sempre sofri e não é pouco. E quase todas as pessoas que conheço se queixam de dores físicas ou morais, por uma razão ou por outra. Ou porque não têm dinheiro, ou porque a pessoa de quem gostam não gosta delas, ou ainda porque sabem que vão morrer um dia e têm medo.

PADRE
Agora é que tu disseste bem: no fundo, se calhar, resume-se tudo a isso. As pessoas têm medo de morrer e tudo o mais decorre daí: as guerras, os crimes, os ciúmes, a necessidade da arte...

LILO
Sendo padre, certamente não terá esse medo. Sabe que vai direitinho para o céu.

PADRE (Rindo)
Lamento desapontar-te meu filho: ninguém tem mais medo da morte do que um padre.

LILO
Ora essa!

PADRE
É como te digo. E a razão é fácil de entender.

LILO
Estou cheio de curiosidade.

PADRE
Na realidade, não há uma razão mas várias. Nunca tinha pensado muito nisto, ocupado como andava a sofrer, mas agora que falo contigo, estou a perceber algumas coisas que ainda não estavam resolvidas na minha cabeça.

LILO
Como assim? Está a deixar-me em pulgas.

PADRE
Tu ainda és muito novo para entender certas coisas.

LILO
Por favor, padre, não se esqueça que ando à procura de uma razão para viver.

PADRE
Razões para viver há muitas, para morrer é que são elas.

LILO
Troque lá isso por míudos, por favor.

PADRE
Deus criou o homem para se testar. Nós somos um teste à capacidade divina. (Noutro tom) Bolas, não era isto que eu queria dizer, onde é que eu fui buscar isto?

LILO
Chama-se a isso uma inspiração. Ou não será? Quando dizemos algo que nos transcende, quero dizer.

PADRE
O que eu queria dizer é que uma coisa é a humanidade e outra sou eu. Ou seja, que quererá Deus de mim? Apenas o meu sofrimento? Ou algo mais? Estarei eu a cumprir cabalmente o meu destino na terra? E se estiver completamente equivocado? Como poderá algum padre, alguma vez, ter a certeza de que está a agir de acordo com os desígnios de Deus?... Já vês que isto é muito complicado!

LILO
Com efeito. De uma coisa tenho a certeza, não nasci para padre, não sinto vocação para o sacerdócio, não tenho esse dom. E não é apenas porque quero ter namorada.

PADRE
Pelo que eu vi e ouvi até agora, a teres algum dom será para jornalista. Gostas tanto de fazer perguntas!

LILO
Será? Na verdade, está-me a dar uma pista preciosa. É verdade que sou muito curioso. Como não sei nada, quero saber tudo.

PADRE
Ora aí está, és um jornalista nato!

LILO
Só me resta encontrar um verdadeiro jornalista, para ver o que é que ele acha, se eu tenho realmente vocação para esse trabalho.

PADRE
Vai então à tua vida. Tenho muito que meditar. Esta conversa contigo deu-me volta à cabeça.

Lilo sai.

Quarto Acto

Um calceteiro está a restaurar um passeio. Lilo aproxima-se.

LILO
Bom-dia, meu amigo, como vai isso?

CALCETEIRO
Olá, como está? Vai-se indo, obrigado.

LILO (Com um mini-gravador na mão)
Eu sou jornalista estagiário e ando a fazer a minha primeira reportagem. Posso fazer algumas perguntas? Importa-se que grave a nossa conversa?

CALCETEIRO
Claro que não, jovem, até agradeço um pouco de companhia. Já viu ocupação mais solitária do que a minha?

LILO
Para falar a verdade, sim. Eu venho do campo e até já fui pastor. Isso sim, é a profissão mais solitária do mundo. Isso e ser faroleiro.

CALCETEIRO
Sim, ser faroleiro ou pastor deve ser bem solitário, é verdade, mas não sei o que é melhor, se estar rodeado de ondas e ovelhas, se de idiotas que não nos ligam nenhuma. Parece que somos invisivéis, as pessoas passam por nós sem nos verem e por pouco não nos pisam... a nós que estamos a trabalhar para elas.

LILO
Devo deduzir do que diz que detesta o seu trabalho?

CALCETEIRO
Não, de maneira nehuma. Apesar de tudo, gosto deste trabalho. Não há nada mais apaziguador do que partir pedra. Estou para aqui, na minha, mergulhado nos meus pensamentos, ninguém me chateia...

LILO (começando a gravar)
Gosta então do que faz?

CALCETEIRO
Tenho dias, Há dias que detesto, mas no fundo, no fundo, gosto do que faço. Sinto que o meu trabalho é útil. (Apontando) Veja-me esta calçada. Não é bonita?

LILO
É, realmente, é. Foi o senhor que fez o desenho?

CALCETEIRO
Não, não fui. Se quer saber a verdade, nem sequer sei quem foi, se é vivo, se é morto. Mas também não interessa nada. Eu gosto é de fazer, não de conceber. Gosto do desafio que é realizar o que os outros apenas imaginaram. Não sei se me estou a fazer entender...

LILO
Está, está. Qual seria, então, o seu dom? Pergunto isto porque ando à procura do meu, não estou ainda bem certo que seja o jornalismo.

CALCETEIRO
Dom? A ter algum dom, será o de amar. Não é para me gabar, mas ninguém ama como eu. Sou um homem feliz: amo a minha mulher e os meus filhos. Os meus pais e os irmãos deles. E os filhos deles também, mesmo um que é mongolóide. Amo, mas amo a sério, uma série de gente. Para mim, não há maior dom do que este.

LILO
Não sei se isso será bem um dom, embora reconheça que...

CALCETEIRO
Estou a ver. Para si, um dom tem que ter um lado prático. No fundo, está a falar de um dom para ganhar a vida. Um coisa profissional, em suma.

LILO
Não sei, talvez seja isso... Amar todos amamos, melhor ou pior, mais ou menos intensamente, mas nem toda a gente tem jeito para conceber uma catedral. Ou um avião.

CALCETEIRO (Ríspido)
Pois é, eu catedrais e aviões não sei conceber. Só sei partir pedra.

LILO
Não o estava a querer ofender, meu amigo.

CALCETEIRO
Não se preocupe, não me ofende de maneira nenhuma. Se for a ver bem, se calhar sou mais feliz do que esse arquitecto ou esse engenheiro de que estava a falar. Se calhar, eles não amam tanto nem tão intensamente como eu. Não têm o meu condão para ser feliz.

LILO
Para se ser feliz é preciso, então, ter condão? E um condão não é o mesmo que um dom?

CALCETEIRO
Conheço imensas pessoas que aparentemente têm tudo para ser felizes e são umas desgraçadas.

LILO
Acredito e acho que percebo o que está a dizer.

CALCETEIRO
Além disso, o meu trabalho parece um trabalho sem grande importância mas se calhar aproveita a mais pessoas do que uma catedral ou um avião, sei lá. E faz-me viver a mim e à minha família que eu tanto amo. Por outro lado, isto de fazer calçadas não é assim tão simples como parece. (Estendendo uma pedra e um martelo a Lilo) vejá lá se consegue partir esta pedra por forma a transformá-la num cubo!

LILO
Nem preciso de tentar, sei que não sou capaz. E invejo-o por isso: tomara eu ser capaz de fazer alguma coisa tão bem, como você faz o seu trabalho.

CALCETEIRO
Claro que é capaz, só precisa de aprender.

LILO
É o que eu ando a fazer: a aprender a viver.

CALCETEIRO
Olhe jovem, isso é que não se aprende mesmo.

LILO
Como assim?

CALCETEIRO
Há velhos que andam cá há 70, 80 ou mesmo 90 anos e nunca aprenderam a viver: são uns seres amargos e dependentes que nunca hão-de perceber o que lhes aconteceu. Olhe o meu vizinho, por exemplo, o que mora na casa ao lado da minha. Tem três filhas e está sempre para ali sozinho, a resmungar o dia todo, a dizer mal da vida. E tomara eu a reforma que ele tem. Nunca aprendeu a viver, é o que é.

LILO
Portanto, ou se tem um condão para a vida ou não.

CALCETEIRO
É isso mesmo. Oxalá o tenha, jovem. Agora, se não se importa, tenho que trabalhar mais um bocado. Daí a nada aparece o chefe e se vir que eu avancei tão pouco, vou ter chatices.

LILO (Parando o gravador)
Muito obrigado pelo seu tempo, acredite que foi muito instrutiva esta conversa. Passe bem, amigo. Até à próxima!

Lilo sai.

Quinto Acto


O estúdio onde vive um jovem fotógrafo, ligeiramente desarrumado. Há livros pelo chão, revistas e uma ou outra peça de roupa. Vê-se uma máquina fotográfica sobre um tripé. Dezenas de fotografias enchem as paredes.
Entram Ada e Lilo.


ADA
Finalmente trazes-me a tua casa. Já namoramos há mais de três meses e começava a pensar que me escondias algo. Perguntava a mim mesma que segredos terríveis ocultavas no teu estúdio.

LILO
A minha casa não é digna de ti, Ada. Tinha medo que ficasses desapontada. É por isso que ainda não te tinha convidado.

ADA (Passeando pelo espaço)
Não digas asneiras, Lilo. Gosto imenso do que vejo. Diz muito sobre ti.

LILO (Inquieto)
O quê? O que é que diz muito sobre mim?

ADA
Vê-se que é a casa de um artista. De um ser inquieto e intenso.

LILO
Dizes isso porque a casa está toda desarrumada. Isso é a tua maneira subtil de me dizeres que sou desleixado.

ADA (Falsamente zangada)
Estou a falar a sério, Lilo.

LILO (Muito doce)
Não te zangues, meu amor. Queres beber alguma coisa?

ADA
Não. Quero ver bem estas fotos. Há muitas que ainda não conhecia.

Ada observa atentamente as fotos, sob o olhar expectante de Lilo.

ADA
Encontraste, finalmente, o teu dom, Lilo. És um fotógrafo admirável. Pelo menos aos meus olhos.

LILO
Os teus olhos são o que mais me importa, Ada. Ter-te encontrado foi bem mais importante para mim do que a descoberta da fotografia.

ADA (Rindo)
Dizes isso porque estás apaixonado por mim neste momento, mas daqui a uns anos, nem te lembrarás da minha existência... Serás nessa altura um fotógrafo famoso.

LILO
És mesmo tonta. Achas que algum dia vou deixar de gostar de ti? Mais facilmente deixaria de gostar de mim...

ADA
O que tiver de ser, será. Mas uma coisa é certa, tens imenso talento como fotógrafo. Tiraste algumas destas fotografias comigo, como esta na praia, por exemplo, mas soubeste ver coisas que me passaram despercebidas.

LILO
Achas? O que essa fotografia mostra não é quase nada. É apenas uma pequena parcela do que vi naquele dia inesquecível e que procurei captar em vão.

ADA
Fotografar é excluir, com efeito, mas não é a vida também assim? Nós só vivemos uma ínfima parte dela. Só aproveitamos uma parte mínima das oportunidades que ela nos dá. Escolhemos um homem entre todos. Uma profissão entre tantas possíveis. E assim por diante.

LILO
Talvez por isso, há quem diga que a vida está toda na mínima fotografia.

ADA (Apontando para outra foto)
E estas duas mulheres a rir. Onde foi isto?

LILO
Foi lá em cima no Norte, durante uma feira. Foi algures na Beira Alta, nem me lembro do nome da aldeia.

ADA
A expressão da velha da direita é demais. E olha as mãos dela. Vê-me estas unhas. São literalmente unhas de fome. Agora é que entendo a expressão.

LILO (Rindo)
Eu só vejo o bigode e a barba. Nunca tinha visto uma mulher com barba!

ADA
Não há dúvida que sabes ir direito ao essencial, captar a essência dos momentos. Este olhar impressiona: pode ler-se nele a alma desta mulher... (Noutro tom) Gosto de ver estas fotos todas assim a monte.

LILO
Também eu. Em conjunto ganham outro significado. Algumas parece que se transformam. Se reparares bem, podes estabelecer sempre novas relações entre elas.

ADA
Pois é: se as imagens são boas, dialogam e multiplicam-se os seus sentidos.

LILO (Com um sorriso gozão)
Vê-se que estudaste filosofia...

ADA (Sorrindo também)
E tu vê-se que estás obcecado contigo próprio... Vê-me só a quantidade de auto-retratos!

LILO
Não me reconheço em nenhum deles. Como dizia o outro: hei-de fotografar-me até me reconhecer.

ADA (Rindo)
Quem disse isso?

LILO
Ninguém... Foi um pintor de rua que conheci.

ADA
A tua mãe havia de se orgulhar de ti, Lilo: sempre encontraste o teu dom. Algo que gostas de fazer e para o qual foste talhado.

LILO
E encontrei também a namorada que ela tanto desejava. Acho que ela havia gostar de ti... Não tanto como eu é certo.

Riem e beijam-se.

LILO
Afinal quem tinha razão foi o homem mais simples que conheci. Um calceteiro que entrevistei um dia. Com ele, e depois contigo, aprendi que que o maior dom é o de amar e, inclusivamente, de amar o que se faz na vida. Tudo o que fazes, profissionalmente ou não. Podes ser um criador de génio, o melhor engenheiro do mundo ou o patrão dos patrões, que sem esse amor e o amor de alguém não és nada. Pois se como pessoa não prestas, de que te valem os teus talentos ou o dinheiro? Graças a ti, Ada, tomei consciência de que o amor de uma só pessoa pode ser o maior tesouro do mundo. Quanto à fotografia, se queres saber não é assim tão importante. Adoro o que faço, mas não quero ser apenas um fotógrafo mais no mundo, um entre milhões de outros. Quero algo mais. Quero viver cada minuto da minha vida como se fosse o último e quero, quando chegar a minha hora, morrer em paz comigo mesmo. Quero não ter vergonha no fim da minha vida e saber que fiz tudo o que estava ao meu alcance para ser feliz e te ter feito feliz. Não concebo ambição maior do que esta.


ADA
Não tenhas pressa de morrer, Lilo, quando ainda nem sequer viveste. Tens tempo, meu querido. (Arrastando-o em direcção à porta) Vem, vamos lá fora almoçar. Hoje pago eu.

Saem e apagam-se as luzes.

FIM