terça-feira, outubro 04, 2005

Cala-me!

Peça em 15 cenas rápidas

1. Preâmbulo

No escuro, som de saltos altos em cima de um soalho de madeira. Primeiro devagar, depois mais depressa, sempre mais depressa. São duas mulheres que se perseguem. Mas não se vê nada. De repente, silêncio.
Entra Bernardo com uma vela e vai à procura delas. Quando as encontra, Rosa e Raquel estão caídas no chão, desamparadas e exaustas.
Rosa diz: É preciso correr.
Raquel responde: Não quero morrer mais.
Bernardo apaga a vela.
Música.

***

2. As Estrangeiras

Bernardo, sentado no chão, procura uma posição cómoda para escrever. Quando finalmente consegue ultrapassar a angústia da página em branco, entra Rosa, sensualíssima.
Rosa – Bonjour, comment ça va?
Bernardo (suspirando) – Tenho muita pena, mas não sei falar...
Rosa – Finalement vous voilá! J’ai rêvé de vous il y a quelques jours et je vous ai cherché partout... C’est trés romantique, vous ne trouvez pas?
Bernardo – Bolas, como é que te hei-de explicar que não percebo nada do que estás para aí a dizer? Não vês que estou ocupado a escrever? (Chateado, falando para si próprio) Ainda perco o fio à meada, e logo agora que isto me estava a correr tão bem...
Bernardo amarrota o papel que estava a escrever e deita-o fora com brusquidão.
Rosa (apanhando o papel amarrotado e guardando-o no soutien) – Ce n’est pas la peine de vous facher... C’est parce-que vous ne comprenez pas ce que je dis, c’est ça? Moi non plus je ne comprends rien de ce que vous dites lá... Et pourtant, dans mon rêve, on se comprennais parfaitement… Peut-être aprés tout ce n’est pas de vous que j’ai rêvé... Dommage. Vraiment dommage!
Rosa sai. Bernardo encolhe os ombros e recomeça a escrever.
Entra Raquel, também muito sensual, com um cigarro na mão por acender.
Raquel – Ei, how are you?
Bernardo (em sobressalto) – Outra? Mas de onde é que elas saem? Onde é que eu estou?
Raquel (insinuante) - I’m looking for a french girl. Did you see her?
Bernardo – Queres lume, é? Tenho muita pena mas não fumo.
Raquel (como se Bernardo já não estivesse presente) – It’s very important that I find her… She’s chasing herself.Raquel sai apressadamente.
Bernardo puxa do telemóvel e liga para um amigo.
Bernardo – Eh, pá, desculpa estar a chatear-te a esta hora mas não calculas o que está a acontecer. Nem vais acreditar... Aparecem-me gajas estrangeiras por todo o lado, já estou a começar a ficar assustado... Achas que é perigoso?Apaga-se a luz.

***

3. Os cruxificados

Raquel, Bernardo e Rosa estão deitados no chão com os braços abertos e as pernas em cima de uma cadeira. Parecem cruxificados, numa clara alusão a Jesus ladeado pelos dois criminosos. Durante todo o diálogo, Bernardo permanece silencioso.
Raquel – Eu acho que é de ti que ele gosta.
Rosa – Pois eu acho que é de ti.
Raquel – Não. Tenho a certeza que é a ti que ele quer.
Rosa – Não é.
Raquel – É.
Rosa – Ouve lá: e tu quere-lo?
Raquel – Eu não. E tu?
Rosa – Eu também não.
Riem as duas.
Raquel – Nesse caso, vamos fazê-lo sofrer um bocado.
Rosa – Como?
Raquel – Ora como? Precisas de lições para isso?
Riem novamente.
Rosa – É patético.
Pausa.
Rosa – Porque é que não gostas dele? Quer dizer... é giro e tudo.
Raquel – Giro é, mas também é muito convencido.
Rosa – Achas?
Raquel – Tu não achas?
Rosa – Se calhar tens razão.
Raquel – E tu? O que é que não gostas nele?
Rosa – Ele quer agradar demais para o meu gosto.
Raquel – Coitado, parece desesperado.
Rosa – É isso. Não achas isso suspeito?
Raquel – Suspeito?... Sim, suspeito. Percebo o que queres dizer.
Rosa – Achas que sim?
Raquel – Que sim, o quê?
Rosa – Que percebes o que quero dizer?
Raquel – Com isso do suspeito? Acho que sim. Se ele quer tanto agradar... se tem que se esforçar para isso, é porque algo não cola bem.
Rosa – Não cola bem? Está bem visto, é uma expressão engraçada.
Riem.
Raquel – Vamos então fazê-lo sofrer?
Rosa – Vamos.
Apaga-se a luz.

***

4. O Monólogo de Raquel

Raquel aperta a garganta a Rosa, enquanto procura enfiar o seu punho na boca da outra. Do tecto pende um microfone. Raquel ordena: Fala! Fala! Perante o mutismo de Rosa, faz-se mais agressiva: Diz qualquer coisa.
Rosa está frágil, quase chora. Mesmo assim, procura falar, sem que se perceba o que diz. Raquel insiste: Este é o teu momento. Aproveita-o. Agora. Grunhidos de Rosa.
Raquel (empurra Rosa com tanta força que ela cai no chão, depois dirige-se ao microfone) - Quando era pequena, mal saía de casa, descalçava os sapatos. Percorria as ruas com os pés nus. Liberta. Descalça, pensava que podia sentir a terra, a vida. Que tudo entraria na minha pele. (Noutro tom) Como eu corria e saltava... Pensava que as minhas pegadas ficariam gravadas no chão, no espaço... que nunca desapareceriam. (Pausa) É preciso que chova. Sim, para aclarar a vista. (Nova pausa) Agora... imóvel... quase imóvel. Apenas o movimento do fumo deslizando pelo meu corpo. Só no meu corpo. Que silêncio! (Rosa que rastejou até ela toca-a ao de leve na perna) Não me toquem. Não gosto que me toquem. Porque insistem? Estou farta. Não vêem que estou com pressa... que estou no fim. (depois de um silêncio mais prolongado) Quero ver como tudo acaba. Quero vingar-me das estrelas por tudo o que me prometeram. Quero manter-te vivo para ter sempre a possibilidade de te matar. Quero o teu nome. Quero fósforos para o caso de me querer queimar. Quero escrever sem ser vista lá do céu. Quero que regresses para acariciar as minhas cicatrizes. Quero que me vejas quando me estiver a afogar. Quero que saibas que eu sei. Que te vejo na escuridão. (Num sussurro) Estou a acabar. Não tenho medo... Só mais uma passa.
Apaga-se a luz.

***

5. A Cena do Vómito

Ainda no escuro, ouvem-se sons estranhos, como se alguém estivesse a sofrer. Entram Rosa e Bernardo empunhando lanternas eléctricas à procura da razão daquele barulho. Finalmente, descobrem Raquel que está a vomitar muito perto do público.
Rosa (apontando para Raquel com a lanterna) – O que é que ela tem?
Bernardo (aproximando-se para ver melhor) – Estará doente?
Rosa – Ela acordou assim.
Bernardo – Ela deitou-se assim.
Rosa – Ela é assim.
Bernardo (com nojo) – Limpa a boca, porca!
Rosa – Dou-te exactamente trinta segundos para parares com isso e limpares a boca.
Raquel continua a vomitar.
Bernardo – Limpa a boca, porca!
Raquel (depois de limpar a boca) – Ontem disse qualquer coisa que me fez mal.
Apagam-se as luzes

***

6. A Confissão de Bernardo

Rosa está sentada numa cadeira a ler. Entra Bernardo com uma cadeira na mão que vai colocar mesmo por detrás de Rosa. Bernardo senta-se de modo a espreitar por cima do rosto dela, procurando ler também.
Rosa (ao fim de algum tempo de silêncio) - Conte-me o que sabe.
Bernardo - Não sei nada.
Rosa - Diga-mo mesmo assim.
Bernardo - Mas se lhe estou a dizer que não sei nada.
Rosa - Sabe.
Bernardo - Não, não sei.
Rosa - Então deixe que eu também não o saiba.
Bernardo - Está bem.
Rosa - Como, está bem?
Bernardo - O que é que me quer obrigar a dizer?
Rosa - Queria partilhar algo consigo. Um segredo, talvez.
Bernardo - Um segredo?
Rosa - Sim.
Bernardo - Supondo que eu tivesse um segredo. Se lho contasse, deixaria de o ser.
Rosa - É por isso que eu quero saber.
Bernardo - Para quê?
Rosa - Seria uma prova de amor.
Bernardo - Mais uma?
Rosa - No amor são precisas sempre novas provas. Todos os dias. Várias.
Bernardo - Porque o amor pode morrer?
Rosa - O verdadeiro amor não morre. Não pode morrer.
Bernardo - Então para que precisa de provas?
Rosa - Porque é a natureza dele: para existir precisa de se ver.
Bernardo - E não é cansativo?
Rosa - Nada no amor é cansativo.
Bernardo - Essa agora!
Rosa - O quê?
Bernardo - Fazer amor cansa. Pelo menos a mim cansa-me.
Rosa - Não é a isso que me estava a referir.
Bernardo - Está a ver? Já lhe contei um segredo: fazer amor cansa-me.
Apaga-se a luz.

***

7. A Cena dos Sapatos

Uma sala cheia de sapatos. Quantos mais melhor. Sapatos de homem e de mulher. Bernardo caminha no meio deles, com alguma dificuldade. Está descalço. Movimenta-se de forma leve e suave, como se dançasse ou flutuasse. Contente, vai pegando nos sapatos com ar apreciativo. Finalmente escolhe uns para calçar. Em cada pé um sapato diferente. Num pé um sapato de homem, noutro um de mulher. Procura andar, mas coxeia. De repente, diz: Os nossos sonhos, se não os levarmos a sério, abandonam-nos.

***

8. A Dança

Bernardo e Raquel dançam, amarrados de costas um para o outro, com uma fita adesiva que diz FRÁGIL, em letras vermelhas.
Raquel (ao fim de alguns segundos) – Vá lá, liberte-me!
Bernardo – Se a libertar, você foge.
Raquel – Prometo que não fujo.
Bernardo – Foge.
Raquel – Não fujo.
Bernardo – Sabe, não sou tal como me vê. Na realidade, sou muito mais bonito do que isto. Por debaixo desta máscara está um homem muito interessante.
Raquel – Então, porque não a tira? Porque não me liberta e tira essa máscara desagradável?
Bernardo – Mesmo que quisesse, não o poderia fazer. Tal como nos contos de fadas, só um verdadeiro amor me permitirá ser eu próprio de novo.
Raquel – E está a contar comigo para isso?... Lamento desiludi-lo: não sou a mulher que procura.
Bernardo – Aí é que se engana. É exactamente a mulher dos meus sonhos. A prova, aliás, é que ainda esta noite sonhei consigo.
Raquel – Como é que isso é possível se ontem ainda nem sequer me conhecia?
Bernardo – É isso que é extraordinário. Não percebe?
Raquel – Então, está bem. Estou decidida a amá-lo. Pode desamarrar-me.
Bernardo – Dizer isso não ajuda nada. Só torna as coisas piores... Mas talvez seja isso que procure: tornar as coisas piores.
Raquel – Tem razão, não estou a ser honesta consigo... Diga-me então: que homem gostaria de ser, se não fosse um animal?
Bernardo – Está mesmo decidida a fazer-me sofrer, não é?
Raquel – Se quer que eu o ame, preciso de o conhecer. Saber o que pensa, o que lhe vai na alma.
Bernardo – O que me vai na alma? (suspiro) Pergunte tudo o que quiser.
Raquel – Que faz na vida?
Bernardo – Isso gostava eu de saber... Sei que perdi qualquer coisa e ando a procurar descobrir o quê.
Raquel – Como toda a gente, afinal.
Bernardo – Não quero dizer que sim, nem pensar que não. Prefiro viver este momento como se não passasse de um sonho.
Raquel – Que sonho? Do que é que está para aí a falar?
Bernardo – Preferia mudar de assunto, se não se importa.
Raquel – Então desamarre-me, está bem?
Bernardo – Só se prometer dar-me um beijo.
Raquel – O quê?
Bernardo – Preciso de um beijo.
Raquel – Que chato...
Bernardo – Preciso urgentemente de me alojar na sua saliva.
Raquel – Está maluco? Parece um cão vadio.
Bernardo – E sou...
Pausa.
Bernardo - Um beijo meu em troca da sua liberdade.
Raquel – Mete-me nojo. Deixe-me ir embora.
Bernardo – Só um... Só um... Só um... Quero sentir-me em casa.
Raquel – Dou-lhe um chocolate.
Bernardo – Quero morder os seus lábios.
Procura fazê-lo, apesar da dificuldade. Raquel procura afastar o rosto do dele, o mais possível.
Raquel – Cale-se, está descontrolado. Olha que eu... grito.
Bernardo – Eu também.
Raquel – Olhe que pode aparecer aí alguém.
Bernardo – Quer que a deixe ir embora?
Raquel – Bem sabe que sim.
Bernardo – Não. Só com um beijo.
Raquel (hesitante) – ... Não.
Bernardo – Sim ou não?
Raquel - ... Sim, está bem, mas não me deixe marcas.
Procuram beijar-se, mas amarrados de costas um para o outro é evidentemente impossível.
A luz apaga-se

***

9. A filmagem

Enquanto Raquel e Rosa conversam no meio dos espectadores, Bernardo filma discretamente as pessoas na plateia, com a função «night-shot» da câmara.
Raquel - Sonhei que andava a fugir. Passei a noite a fugir.
Rosa - De quem?
Raquel - Não sei. Não era bem de alguém, era mais de uma coisa, uma coisa terrível, já não me lembro o quê.
Pausa.
Raquel - Primeiro fugia pelas ruas. Depois, dentro de um palácio enorme, sem fim. Um labirinto de corredores, de escadarias, de salas.
Pausa.
Raquel - Por vezes, havia pessoas, grupos de pessoas, pelas quais eu passava a correr. Umas gritavam-me coisas que eu não entendia. Havia rostos ameaçadores. Havia também quem me ajudasse, que me indicasse qual o caminho a seguir. De repente, caí num poço, num buraco qualquer. Mas era macio, escorregava como por um tubo, caía sem me aleijar. À minha volta estavam montes de aleijados: pessoas sem braços, sem pernas, sem dentes, sem olhos, coisas assim.
Rosa - Que pesadelo!
Raquel - Acordei. Tive tanto medo que acordei.
Careta de Rosa.
Raquel - Claro que tive uma insónia. Depois daquilo já não consegui voltar a adormecer, já só consegui pregar olho de madrugada.
Rosa - Coitada.
Raquel - Não, olha, acabou por ser bom, comecei a pensar, nisto e naquilo, e tive uma ideia.
Rosa - Uma ideia? Que ideia?
Raquel - Isso não posso dizer. Não posso dizer já.
Rosa - Porquê?
Raquel - Porque ainda não sei se a ideia resulta.
Rosa - Não me queres sequer dar uma pista?
Raquel - Não. Dar-te uma pista era contar-te tudo. Percebias logo.
Rosa - E não queres que eu perceba?
Raquel - Para já, não.
Rosa - Então quando?
Raquel - Quando tiver a certeza que a ideia resulta.
Rosa - E se não resultar?
Raquel - É por isso que não te conto, porque pode não resultar.
Rosa - E qual é o problema?
Raquel - Não quero que penses mal de mim.
Rosa - Como assim?
Raquel - Não quero que penses que tenho ideias idiotas.
Rosa - Mas tu tens ideias idiotas! Essa ideia é idiota!
Raquel - Que ideia?
Rosa - Essa ideia de que posso pensar mal de ti por teres uma ideia que não resulta.
Raquel - Estás a ver? Tenho razão, já estás a pensar mal de mim.
Rosa - És completamente louca. Contigo é impossível conversar.
Saem.

***

10. Ruídos Mortos

Raquel e Bernardo conversam.
Bernardo – Detesto esperar!
Raquel - Quem espera não pensa. Se pensasse não esperava. A espera é uma espécie de pensamento congelado. Como uma dor. Uma obsessão.
Bernardo não responde.
Raquel - A espera é transparente.
Bernardo – O quê? Disseste alguma coisa? Está tanto silêncio que não consigo ouvir nada.
Raquel - Estou a falar sozinha.
Bernardo - É o costume, falas sempre como se estivesses sozinha.
Pausa.
Raquel – É porque não quero conversar.
Bernardo – Estou a ver.
Raquel – Não quero conversar, a sério que não quero conversar. É a última coisa que eu quero.
Bernardo – Pois a mim, apetece-me imenso conversar.... Nunca conversamos... e este parece-me o momento ideal para o fazer.
Raquel – Conversamos em breve, prometo. Amanhã. Ou depois de amanhã. Mas hoje não.
Bernardo – Então, o que é que queres fazer hoje?
Raquel – Calar-me. Quero estar calada. Quero ouvir o silêncio... Ouvir todos estes ruídos mortos à minha volta.
Bernardo – Mortos? Porquê mortos?
Raquel – Ouve, e vê lá se não estão mortos!
Silêncio. Muito tempo.
Bernardo – Isto faz-me lembrar uma sensação estranhíssima que senti ontem, quando estava na esplanada à tua espera. Eu estava ali, mas era como se não estivesse, porque ninguém dava por mim. Sabes como é, é como se fossemos invisíveis. Era como se só os meus olhos estivessem ali. E como se ninguém o soubesse. Ninguém me via, mas eu sim, via tudo. Queria ver tudo.
Antes que a Raquel responda, apaga-se a luz.

***

11. A história em segunda mão

Bernardo e Rosa entram empurrando dois carrinhos que suportam televisões, onde eles estão também, cada um na sua, em grande plano, fazendo caretas horríveis.
Bernardo - Há dias que tenho a cabeça tão vazia que parece que não mora ninguém cá dentro.
Rosa - Não mora ninguém, onde?
Bernardo - Aqui dentro da cabeça. Ou tu não tens a sensação de ser habitada por alguém?
Rosa - Não, não me parece que tenha algum hóspede. Já teria dado por isso.
Bernardo - Pois eu tenho um companheiro invisível.
Pausa.
Rosa – Conta-me uma história.
Bernardo – Uma história? Que história?
Rosa – Uma história qualquer. Tens tanto jeito para contar histórias...
Bernardo – Achas?
Rosa – Acho.
Bernardo – Que história é que eu já te contei?
Rosa – Tantas. Sei lá...
Bernardo – Diz-me uma.
Rosa – Não te lembras?
Bernardo – Não.
Rosa – Não te lembras de me contar nenhuma história? Não acredito!
Bernardo – Não, já te disse.
Rosa – Nem aquela história da mulher que vivia perseguida...
Bernardo – Não faço a mínima ideia do que estás para aí a falar.
Rosa – De uma mulher que vivia perseguida por si própria... espera lá, assim sou eu que vou contar a história e não tu. É o contrário do que eu queria.
Bernardo – Conta lá e cala-te.
Rosa – Conto ou calo-me?
Bernardo – Sabes bem o que eu quero dizer. Pára de dizer disparates e conta lá a história que eu te teria contado.
Rosa – Não faz sentido. Não faz sentido contar-te uma história que tu me contaste. Seria uma história em segunda mão.
Bernardo – Ora aí está um bom título para um livro: «Uma história em segunda mão».
Rosa – Provavelmente, já alguém o usou
.
Bernardo – Achas? Porque é que dizes isso?
Rosa – Parece-me um título demasiado óbvio para nunca ter sido utilizado. Sabes como é: hoje em dia é difícil ter uma ideia original. Já tudo foi feito, já tudo foi dito.
Bernardo – Já tudo foi inventado.
Rosa – Exactamente.
Bernardo – Não temos outro remédio, no entanto, senão continuar a viver como se tudo fosse possível ainda. Como se fossemos os primeiros habitantes da terra.
Rosa – Mais provavelmente seremos os últimos.
Bernardo – Tens razão, não perderia este momento por nada deste mundo.
Ambos riem.

***

12. Uma Única Palavra

Voltam Bernardo e Rosa com as televisões que os representam. Mas agora a conversa tem lugar no televisor. Os actores permanecem calados.
Bernardo - Por vezes, basta que me falte uma única palavra para eu já não conseguir dizer o que quero. Pior que isso, para eu já não saber o que quero ou o que sinto. Por vezes, uma palavra, uma única palavra, pode deitar tudo a perder.
Rosa – É por isso que há quem faça colecção.
Bernardo - Em vão. Pode possuir-se uma reserva imensa de palavras e mesmo assim não encontrar a palavra certa quando é preciso.
Rosa - Por mim, uso apenas palavras comuns. Palavras que não custam nada, que estão ao alcance de qualquer pessoa. Palavras como bom dia ou boa tarde, passou bem e já está.
Bernardo - Mesmo com essas palavras é preciso toda a cautela. O melhor é usar uma de cada vez.
Saem.

***

13. Monólogo de Bernardo

Bernardo dirige-se ao microfone, timidamente. Receoso. Respira nervosamente ao microfone. Olha o público de forma concentrada. Tenta captar cada pessoa no público através do olhar. Sente-se doente. Tenta respirar. Não consegue respirar normalmente.
Diz: Não consigo respirar.
Tira um cigarro e acende-o. Fuma como se o cigarro fosse o seu oxigénio. Respira através do fumo.
Bernardo – Hoje o meu corpo acordou mais cedo do que eu. Ordenei-lhe que continuasse na cama, colado à almofada, ao colchão e aos lençóis. «São sete da matina, porra!» Mas ele não quis obedecer. Nem se preocupou comigo. Ora essa, um corpo com vontade própria. Para ver se o voltava a adormecer, enrolei-me e abracei-o com força. Aninhei um pé no outro, juntei as mãos à cara e ao peito e procurei relaxar os sentidos. Desloquei-os para camas com lareiras e para prados enormes, bêbados de verdes e de sombras. Os olhos bem fechados. Mas ele, o corpo, estava de vigília. Bem desperto. Muito mais vivo do que eu. Foi ele quem sentiu o voo picado das pombas até ao canteiro da minha janela. Putas!
Não desisti. Tentei outra posição de sono. Virei-me para a parede, as mãos entre as pernas e a cabeça enterrada na almofada. Voltei a juntar os pés. Gosto disso. E permaneci assim parado durante algum tempo. Pude ouvir a vizinha de cima a fazer a sua higiene pessoal, o telemóvel a acusa falta de bateria, enquanto fingia dormir. Talvez o corpo tivesse sede. Falta de líquido nos sonhos. Servi imediatamente o conteúdo do copo que estava no chão do quarto.
Saciado de água, ele queria agora levantar-se. Espreguiçar os músculos, bocejar alto e saltar dali para fora para a pastelaria mais próxima. Isso é que era! Tinha planos bem definidos. Mastigaria muito bem disposto um croissant com queijo aquecido junto com leite com chocolate. Quente. Ele queria coisas quentes. E se era para continuar na cama que fosse para abraçar alguém intensamente. Calorosamente. Amorosamente. O raio do corpo queria outro corpo. Que caprichoso, o gajo. E vieram-lhe à memória hsitórias de amor queimadas, rostos, lábios, mãos beijadas e braços e pernas avulso. Estava bem capaz de cometer os maiores disparates para agarrar outro corpo. Para tocar noutro corpo. Naquele momento. Mas não estava excitado. Não era tesão que sentia, era solidão. Um apartamento de sentimentos despovoado de inquilinos. Que estranho.
O corpo queixava-se de solidão e eu queixava-me de sono. Afinal de contas, não tinha dormido quase nada. Isto não faz sentido. Não faz sentido. Os corpos não são feitos para pensar, nem para recordar e eu é que sei se quero dormir ou fazer amor com alguém. Porra! Será que se eu fosse paraplégico teria dormido melhor?


***

14. Os Espectadores no Ecrã

Com a sala às escuras, os espectadores aparecem no ecrã (filmados por Bernardo com o «night-shot»). Em off, ouve-se o seguinte diálogo:
Rosa – Se alguém capturasse uma imagem de mim, desprevenida, sem eu saber, e um dia mais tarde eu visse essa imagem e nela não me reconhecesse, continuaria a ser eu?
Benardo – E se, ao ver essa imagem, me reconhecesse nela, que parte de mim me teria ela roubado?
Rosa – E se um dia mais tarde, ao ver essa imagem, eu não me reconhecesse nela, que parte de mim me teria ela roubado?
Bernardo – E se ao ver essa imagem, me reconhecesse nela, continuaria a ser eu?
Rosa – E se ao ver essa imagem, eu te reconhecesse a ti, que parte de ti me teria ela roubado?

Bernardo – E se ao ver essa imagem, eu não te reconhecesse, continuaria a ser eu?
Rosa – Em ti ou na imagem?
Quando o filme acaba, acende-se um projector sobre um microfone de pé. Bernardo e Rosa aparecem, muito elegantes e dirigem-se ao microfone. Rosa tem um envelope na mão. O diálogo que se segue deve ser dito com largos sorridos e com todo o glamour das vedetas que vão anunciar os óscares.
Rosa - Diz-me Bernardo: sonhas por imagens ou por palavras?
Bernardo – Não é a mesma coisa?
Rosa – Não sei. É?
Bernardo – Não faço ideia. Sei que nos meus sonhos vejo coisas mas sem as ver e ouço sem ouvir. Mas é como quando penso: se penso na mimha avó, por exemplo, parece que a estou a ver, mas não estou. E quando estou a escrever, só vejo as palavras quando as escrevo. Não antes.
Rosa – Sendo assim, na tua opinião, nos sonhos não há imagens. nem palavras, mas é como se as houvesse. É isso?
Bernardo – O que é uma imagem? O que é uma palavra? Pensando bem...
Rosa – Pensando bem, o quê?
Bernardo – É como o outro dizia: a vida é um sonho.
Rosa – Não existe realmente, é isso?
Bernardo – O que é a realidade para alguém que já morreu? Ou para alguém que ainda não nasceu?
Rosa – Dá-me uma vertingem só de pensar nisso.
Bernardo – Pois, e não é para isso que aqui estamos.
Rosa – Pois não, vamos lá ao que importa, está toda a gente à espera.
Bernardo (enquanto Rosa rasga o envelope) – E o prémio de melhor sonhador vai para...
Rosa (lê o papel e diz com grande alegria, apontando para o meio da sala) – Para aquele espectador ali, na quarta fila!
A luz apaga-se, de repente.

***

15. Os Aquários

Bernardo, Rosa e Raquel entram carregando grandes aquários cheios de água. Colocam-nos no chão e ficam de joelhos observando-se mutuamente. Depois, um deles faz um sinal e os três mergulham a cabeça dentro do aquário, procurando ficar lá dentro mais tempo do que os outros.
Raquel (Quando já todos tiverem tirado as cabeças de dentro de água) – Então?
Rosa – Eu vi-me a mim própria no futuro, daqui a 15, 20 anos, não sei... e não gostei nada do que vi.
Raquel e Bernardo (ao mesmo tempo) – Porquê?
Rosa – E vocês?... Sentiram alguma coisa?
Bernardo – Eu lembrei-me de algo que já tinha esquecido.
Rosa e Raquel (ao mesmo tempo) – O quê?
Bernardo – Ninguém gosta de mim!
Rosa e Raquel riem.
Bernardo – Não vejo onde está a piada.
Raquel – Então, Rosa, afinal que viste tu?
Rosa – E tu? Ainda não disseste o que sentiste!
Bernardo – Pois, tu ainda não disseste.
Raquel (depois de muito hesitar) – Fiquei com o desejo de experimentar morrer... Fiz uma descoberta terrível: tive prazer no meu medo.
Bernardo – Prazer?
Rosa – No medo?
Raquel – Sim. Toda aquela água à minha volta, a escuridão... o silêncio... senti medo e logo... assim como que uma sensação de doce abandono.
Rosa (quase chocada) – Porque é que tu tens sempre que sentir coisas melhores do que eu?
Bernardo (rindo) – Se calhar porque tem mais imaginação.
Raquel volta a mergulhar a cabeça no aquário. E os outros dois imitam-na.
Apaga-se a luz.

FIM