quinta-feira, outubro 20, 2005

O dom de Lilo

Primeiro Acto

A Mãe está acamada e Lilo está ao pé dela, sentado na cama. Estão de mãos dadas e olham-se nos olhos.

MÃE
Vou morrer meu filho, chegou a minha hora. Tens que ser corajoso.

LILO
Mãe, por favor, não digas isso...

MÃE
Não chores, Lilo. Mais tarde ou mais cedo este dia tinha que chegar. Não tenhas pena de mim, tive uma vida muito preenchida, mas agora estou cansada, esta doença consumiu-me todas as reservas de energia que tinha. De resto, cansei-me deste mundo, anseio pela paz eterna.

LILO
Mas eu ainda preciso de ti, mãe.

MÃE
Pensas que precisas, mas não precisas, Lilo. Já te ensinei o pouco que sabia e está na altura de voares pelas tuas próprias asas.

LILO
Que devo eu fazer mãe?

MÃE
É isso mesmo que tens que descobrir: o que deves e queres fazer da tua vida. Essa é a tua primeira missão, o teu primeiro dever para comigo, e para contigo, quando eu tiver desaparecido.

LILO
Ainda não estou preparado, ainda não me sinto suficientemente esclarecido, preciso que fiques comigo mais uns tempos.

MÃE
Sabes bem que isso não é possível. Vais ter que arranjar uma namorada.

LILO
E como é que isso se arranja, mãe?

MÃE (Rindo, com um esgar de dor)
Não me faças rir, que eu não posso.

LILO (Aflito)
Não estará na hora de tomares o teu comprimido?

MÃE
Não quero mais comprimidos... Quero que me ouças, Lilo. Tenho procurado guiar-te na vida, mas vou morrer sem ter conseguido perceber para o que é que tens vocação. E isso entristece-me.

LILO
Se calhar não presto para nada. Já pensaste nisso?

MÃE
Não digas isso. Toda a gente tem algum préstimo, todos temos jeito para alguma coisa. Não há pessoa no mundo que não tenha um dom qualquer, mesmo se muita gente nunca chega a descobrir qual é. E é isso mesmo que tenho medo que te aconteça, Lilo, que não chegues a descobrir nunca a tua missão na terra.

LILO
Tu, ao menos, tens jeito para imensas coisas: cozinhar, coser, jardinar, tocar piano, dar aulas... toda a gente diz que eras uma excelente professora...

MÃE
Se era ou não, não sei, mas descobri muito nova que era isso que queria fazer. Sempre quis ser professora, ensinar aos outros o que eu própria fosse descobrindo. E, como acho que os primeiros anos da vida de uma pessoa são determinantes, quis ser professora primária para preparar os miúdos o melhor possível.

LILO
Foste muito boa nisso, mãe, toda a gente o diz.

MÃE
No entanto, não consegui ajudar o meu próprio filho a escolher o seu futuro.

LILO
Não digas isso assim, mãe, fazes parecer uma coisa muito dramática. Ninguém teve uma mãe mais maravilhosa do que eu.

MÃE
Obrigado, Lilo, és um bom filho... Tens que me prometer que vais procurar o teu dom. E que vais procurar fazer na vida aquilo que mais gostares. Não imaginas como é importante nós fazermos aquilo para que fomos talhados. Não viver toda a vida contrariados. Olha o teu tio António, por exemplo, é um infeliz, um desgraçado. É funcionário público há trinta e tal anos e detestou cada minuto que passou no trabalho. O que ele gostaria era de ter sido marceneiro, mas nunca teve a coragem de se despedir e montar a oficina com que sempre sonhou.

LILO
E se o meu dom fosse para vadiar? É o que eu mais gosto de fazer, mãe, andar por aí a encher os olhos com o espectáculo da vida. Não há nada que goste mais do que estar sentado numa esplanada ou num jardim a observar as pessoas. Ou as árvores, os pássaros, os prédios ou um lago... Tudo me delicia. Na praia, por vezes, devem pensar que sou maluquinho: passo a vida a maravilhar-me com os grãos de areia, com as formas das conchas, as cores das pedras...

MÃE
Estás a confundir as coisas, Lilo, e a deixar-me ainda mais preocupada (Lilo faz menção de dizer qualquer coisa, mas a mãe cala-o com um gesto, continuando a falar). Gostares do espectáculo da vida só prova como és sensível e esperto, mas ninguém é vadio por vocação, somente por estupidez ou distração. Se viemos a este mundo foi por alguma razão. Todos temos uma dívida para com o mundo, um dever a cumprir para com os nossos pais, irmãos, maridos, mulheres e demais pessoas. É por isso que gosto de chamar dom aquilo que outros chamam vocação. Pois quando somos bons nalguma coisa, temos o dever de o partilhar com os outros. Trata-se, efectivamente, de doar alguma coisa, ao mundo e aos nossos semelhantes.

LILO
Eu estava só a meter-me contigo, não te queria apoquentar. Eu prometo, mãe, que a partir deste momento, a minha prioridade é encontrar aquilo a que chamas o meu dom.

MÃE
Eu sei, Lilo. Sei como te eduquei. Quando encontrares o teu dom, terás encontrado o teu caminho. Ou vice-versa. Agora deixa-me dormir um bocadinho, porque esta conversa deixou-me esgotada.

Lilo dá um beijo carinhoso à mãe e sai do quarto.


Segundo Acto


Um pintor desenha ao ar livre. Lilo aproxima-se e fica a observá-lo durante alguns instantes. O pintor apercebe-se que está a ser observado e volta-se para ver quem é.

LILO
Que bem que o senhor desenha!

PINTOR (Interrompendo o seu trabalho)
Achas?

LILO
O quê? O senhor não acha que desenha bem?

PINTOR
Não, ainda não desenho bem. Mas estou a trabalhar para isso: para um dia poder vir a fazê-lo como deve ser. Como gostaria de o fazer. É por isso que todos os dias trabalho horas a fio. Conheces a história do cantor lírico americano?

LILO
Não, nunca ouvi. Como é?

PINTOR
Um americano chegou um dia a Itália, o país da ópera por execelência, convencido de que cantava muito bem. O sonho dele era cantar para o público de Milão, considerado o mais exigente do mundo no que respeita ao canto lírico. Tanto andou que lá conseguiu uma oportunidade, num concurso para amadores. A sala estava cheia e o americano cantou o melhor que sabia, com força, com entusiasmo. Quando acabou toda a gente começou a gritar «Bis! Bis!» e ele sentiu um grande orgulho. Cantou mais duas árias e, no fim, repetiu-se a cena, com toda a gente a pedir «Bis! Bis!» Cinco, seis, muitas vezes, sempre que acabava de cantar, as pessoas queriam mais. Até que, por fim, o americano, exausto, disse: «Vocês são um público maravilhoso, mas confesso que estou cansado, além de que se está a fazer tarde. Querem realmente que eu cante mais?». Então, um espectador da primeira fila levantou-se e disse: «Sim, tens que cantar até aprenderes a fazê-lo».

LILO (Rindo)
É uma história engraçada.

PINTOR
É a minha história. No fundo, é a história de todos os artistas que se prezam. Temos que praticar, praticar até aprender. Por mim, acho que muito poucos pintores chegaram alguma vez a desenhar bem. Os melhores de todos morreram quando começavam finalmente a sentir que estavam quase a chegar lá.

LILO
E que é feito do dom, no meio disso tudo?

PINTOR
Qual dom?

LILO
O dom para o desenho. Toda a gente sabe que há pessoas que nascem com o dom para o desenho. Já a minha mãe o dizia.

PINTOR
O que as pessoas chamam de dom para o desenho é na realidade um dom para o trabalho. É um dom muito humilde mas, com efeito, ou tens esse dom ou nunca chegarás sequer a saber segurar como deve ser no lápis ou no pincel.

LILO
E como é que uma pessoa sabe se tem esse dom ou não?

PINTOR
É fácil. Se começares a fazer rabiscos e não fores mais capaz de parar, é quase certo que tens esse dom. E quem diz desenhar diz cantar, escrever, ou até fazer candeeiros.

LILO
Também é preciso um dom para fazer candeeiros?

PINTOR
Claro. Para fazer candeeiros que façam realmente alguma diferença, que tragam realmente alguma luz ao mundo. (Ri) Para reproduzir o que já existe não é preciso dom nenhum, como é óbvio.

LILO
E você acha que traz algo de novo ao mundo?

PINTOR
Esse é, pelo menos, o meu grande objectivo. Provavelmente morrerei sem ter sabido se consegui fazer alguma diferença, mas ao menos terei tentado.

LILO
Admiro-o. Gostava de ser como o senhor. Gostava de saber qual é o meu dom. Acha que me pode ajudar nisso?

PINTOR
Tudo o que sei é que se queres saber mesmo qual é o teu dom, já estás no bom caminho. A não ser que estejas simplesmente a passar por uma fase, uma crise de crescimento. Se for esse o caso, isso passa-te. Se calhar até era melhor para ti não teres nenhum dom, seres apenas mais um palerma que anda para aí, a votar nas pessoas erradas e a dar importância ao que não tem interesse algum.

LILO
Como pode ser tão cruel?

PINTOR
Não queria ofender-te pequeno, mas na verdade não vejo o que posso fazer por ti, ou tu por mim.

LILO
Pelo menos, já aprendi uma lição hoje.

PINTOR
Ai, sim? E qual foi?

LILO
Pode-se desenhar muito bem, ter um verdadeiro dom para o desenho e não se ser boa pessoa na mesma. Pode-se ser um grande artista e ter mau feitio, ou mesmo ser uma pessoa ruim.

PINTOR (Rindo)
E ainda não sabias isso?

LILO
Não, não sabia. Estupidamente, pensava que quem criava coisas belas havia de ser bom e justo.

PINTOR
Ó filho estás enganado, há flores lindas no meio da merda.

LILO
Com efeito, esta conversa está a começar a cheirar mal. Boa tarde!

Lilo sai e o pintor recomeça a trabalhar.

Terceiro Acto

Sentado num banco de jardim, um padre lê a Bíblia. Lilo aproxima-se.

LILO
Boas tardes, padre.

PADRE
Boa-tarde, meu filho.

LILO
Importa-se que lhe faça companhia?

PADRE
Claro que não, por amor de Deus.

Lilo senta-se a seu lado. Pequeno silêncio.

PADRE
Querias talvez confessar-te?

LILO
Não é bem confessar-me, mas talvez pedir-lhe conselho. A verdade é que tenho uma missão, mas não sei por onde começar.

PADRE
Uma missão? E que missão é essa?

LILO
Tenho que encontrar o meu dom. Antes de morrer, a minha mãe disse-me que era a primeira coisa que eu devia fazer, depois de a ter enterrado.

PADRE
O teu dom? Que dom? Não estou a perceber.

LILO
Segundo a minha mãe, todos nós temos um dom, só que nem todos o encontraram ainda. Uns têm um dom para a matemática, outros para desenhar ou escrever. Outros ainda para serem médicos, polícias ou... padres.

PADRE
E tu não sabes qual é o teu? É isso?... A tua mãe tem razão: todos temos um dom, pode é não ser tão nobre como esses que estás a referir. Há quem tenha um dom para a costura ou para abrir poços, simplesmente. Eu, por exemplo, tenho um dom para sofrer.

LILO
Para sofrer?

PADRE
Sim, meu filho, foi por isso que me fiz padre. Sofro por todos os pecadores, por toda a humanidade.

LILO
Mas isso é horrível!

PADRE
Não, não é assim tão horrível como parece. Por mais incrível que isto te possa parecer, gosto de sofrer, encontro algum conforto no meu sofrimento. Esta minha missão, para falar como tu, faz-me sentir vivo e útil. Eu sofro pelos que não sofrem.

LILO
Haverá quem não sofra?

PADRE
Duvidas?

LILO
Eu sofro, sempre sofri e não é pouco. E quase todas as pessoas que conheço se queixam de dores físicas ou morais, por uma razão ou por outra. Ou porque não têm dinheiro, ou porque a pessoa de quem gostam não gosta delas, ou ainda porque sabem que vão morrer um dia e têm medo.

PADRE
Agora é que tu disseste bem: no fundo, se calhar, resume-se tudo a isso. As pessoas têm medo de morrer e tudo o mais decorre daí: as guerras, os crimes, os ciúmes, a necessidade da arte...

LILO
Sendo padre, certamente não terá esse medo. Sabe que vai direitinho para o céu.

PADRE (Rindo)
Lamento desapontar-te meu filho: ninguém tem mais medo da morte do que um padre.

LILO
Ora essa!

PADRE
É como te digo. E a razão é fácil de entender.

LILO
Estou cheio de curiosidade.

PADRE
Na realidade, não há uma razão mas várias. Nunca tinha pensado muito nisto, ocupado como andava a sofrer, mas agora que falo contigo, estou a perceber algumas coisas que ainda não estavam resolvidas na minha cabeça.

LILO
Como assim? Está a deixar-me em pulgas.

PADRE
Tu ainda és muito novo para entender certas coisas.

LILO
Por favor, padre, não se esqueça que ando à procura de uma razão para viver.

PADRE
Razões para viver há muitas, para morrer é que são elas.

LILO
Troque lá isso por míudos, por favor.

PADRE
Deus criou o homem para se testar. Nós somos um teste à capacidade divina. (Noutro tom) Bolas, não era isto que eu queria dizer, onde é que eu fui buscar isto?

LILO
Chama-se a isso uma inspiração. Ou não será? Quando dizemos algo que nos transcende, quero dizer.

PADRE
O que eu queria dizer é que uma coisa é a humanidade e outra sou eu. Ou seja, que quererá Deus de mim? Apenas o meu sofrimento? Ou algo mais? Estarei eu a cumprir cabalmente o meu destino na terra? E se estiver completamente equivocado? Como poderá algum padre, alguma vez, ter a certeza de que está a agir de acordo com os desígnios de Deus?... Já vês que isto é muito complicado!

LILO
Com efeito. De uma coisa tenho a certeza, não nasci para padre, não sinto vocação para o sacerdócio, não tenho esse dom. E não é apenas porque quero ter namorada.

PADRE
Pelo que eu vi e ouvi até agora, a teres algum dom será para jornalista. Gostas tanto de fazer perguntas!

LILO
Será? Na verdade, está-me a dar uma pista preciosa. É verdade que sou muito curioso. Como não sei nada, quero saber tudo.

PADRE
Ora aí está, és um jornalista nato!

LILO
Só me resta encontrar um verdadeiro jornalista, para ver o que é que ele acha, se eu tenho realmente vocação para esse trabalho.

PADRE
Vai então à tua vida. Tenho muito que meditar. Esta conversa contigo deu-me volta à cabeça.

Lilo sai.

Quarto Acto

Um calceteiro está a restaurar um passeio. Lilo aproxima-se.

LILO
Bom-dia, meu amigo, como vai isso?

CALCETEIRO
Olá, como está? Vai-se indo, obrigado.

LILO (Com um mini-gravador na mão)
Eu sou jornalista estagiário e ando a fazer a minha primeira reportagem. Posso fazer algumas perguntas? Importa-se que grave a nossa conversa?

CALCETEIRO
Claro que não, jovem, até agradeço um pouco de companhia. Já viu ocupação mais solitária do que a minha?

LILO
Para falar a verdade, sim. Eu venho do campo e até já fui pastor. Isso sim, é a profissão mais solitária do mundo. Isso e ser faroleiro.

CALCETEIRO
Sim, ser faroleiro ou pastor deve ser bem solitário, é verdade, mas não sei o que é melhor, se estar rodeado de ondas e ovelhas, se de idiotas que não nos ligam nenhuma. Parece que somos invisivéis, as pessoas passam por nós sem nos verem e por pouco não nos pisam... a nós que estamos a trabalhar para elas.

LILO
Devo deduzir do que diz que detesta o seu trabalho?

CALCETEIRO
Não, de maneira nehuma. Apesar de tudo, gosto deste trabalho. Não há nada mais apaziguador do que partir pedra. Estou para aqui, na minha, mergulhado nos meus pensamentos, ninguém me chateia...

LILO (começando a gravar)
Gosta então do que faz?

CALCETEIRO
Tenho dias, Há dias que detesto, mas no fundo, no fundo, gosto do que faço. Sinto que o meu trabalho é útil. (Apontando) Veja-me esta calçada. Não é bonita?

LILO
É, realmente, é. Foi o senhor que fez o desenho?

CALCETEIRO
Não, não fui. Se quer saber a verdade, nem sequer sei quem foi, se é vivo, se é morto. Mas também não interessa nada. Eu gosto é de fazer, não de conceber. Gosto do desafio que é realizar o que os outros apenas imaginaram. Não sei se me estou a fazer entender...

LILO
Está, está. Qual seria, então, o seu dom? Pergunto isto porque ando à procura do meu, não estou ainda bem certo que seja o jornalismo.

CALCETEIRO
Dom? A ter algum dom, será o de amar. Não é para me gabar, mas ninguém ama como eu. Sou um homem feliz: amo a minha mulher e os meus filhos. Os meus pais e os irmãos deles. E os filhos deles também, mesmo um que é mongolóide. Amo, mas amo a sério, uma série de gente. Para mim, não há maior dom do que este.

LILO
Não sei se isso será bem um dom, embora reconheça que...

CALCETEIRO
Estou a ver. Para si, um dom tem que ter um lado prático. No fundo, está a falar de um dom para ganhar a vida. Um coisa profissional, em suma.

LILO
Não sei, talvez seja isso... Amar todos amamos, melhor ou pior, mais ou menos intensamente, mas nem toda a gente tem jeito para conceber uma catedral. Ou um avião.

CALCETEIRO (Ríspido)
Pois é, eu catedrais e aviões não sei conceber. Só sei partir pedra.

LILO
Não o estava a querer ofender, meu amigo.

CALCETEIRO
Não se preocupe, não me ofende de maneira nenhuma. Se for a ver bem, se calhar sou mais feliz do que esse arquitecto ou esse engenheiro de que estava a falar. Se calhar, eles não amam tanto nem tão intensamente como eu. Não têm o meu condão para ser feliz.

LILO
Para se ser feliz é preciso, então, ter condão? E um condão não é o mesmo que um dom?

CALCETEIRO
Conheço imensas pessoas que aparentemente têm tudo para ser felizes e são umas desgraçadas.

LILO
Acredito e acho que percebo o que está a dizer.

CALCETEIRO
Além disso, o meu trabalho parece um trabalho sem grande importância mas se calhar aproveita a mais pessoas do que uma catedral ou um avião, sei lá. E faz-me viver a mim e à minha família que eu tanto amo. Por outro lado, isto de fazer calçadas não é assim tão simples como parece. (Estendendo uma pedra e um martelo a Lilo) vejá lá se consegue partir esta pedra por forma a transformá-la num cubo!

LILO
Nem preciso de tentar, sei que não sou capaz. E invejo-o por isso: tomara eu ser capaz de fazer alguma coisa tão bem, como você faz o seu trabalho.

CALCETEIRO
Claro que é capaz, só precisa de aprender.

LILO
É o que eu ando a fazer: a aprender a viver.

CALCETEIRO
Olhe jovem, isso é que não se aprende mesmo.

LILO
Como assim?

CALCETEIRO
Há velhos que andam cá há 70, 80 ou mesmo 90 anos e nunca aprenderam a viver: são uns seres amargos e dependentes que nunca hão-de perceber o que lhes aconteceu. Olhe o meu vizinho, por exemplo, o que mora na casa ao lado da minha. Tem três filhas e está sempre para ali sozinho, a resmungar o dia todo, a dizer mal da vida. E tomara eu a reforma que ele tem. Nunca aprendeu a viver, é o que é.

LILO
Portanto, ou se tem um condão para a vida ou não.

CALCETEIRO
É isso mesmo. Oxalá o tenha, jovem. Agora, se não se importa, tenho que trabalhar mais um bocado. Daí a nada aparece o chefe e se vir que eu avancei tão pouco, vou ter chatices.

LILO (Parando o gravador)
Muito obrigado pelo seu tempo, acredite que foi muito instrutiva esta conversa. Passe bem, amigo. Até à próxima!

Lilo sai.

Quinto Acto


O estúdio onde vive um jovem fotógrafo, ligeiramente desarrumado. Há livros pelo chão, revistas e uma ou outra peça de roupa. Vê-se uma máquina fotográfica sobre um tripé. Dezenas de fotografias enchem as paredes.
Entram Ada e Lilo.


ADA
Finalmente trazes-me a tua casa. Já namoramos há mais de três meses e começava a pensar que me escondias algo. Perguntava a mim mesma que segredos terríveis ocultavas no teu estúdio.

LILO
A minha casa não é digna de ti, Ada. Tinha medo que ficasses desapontada. É por isso que ainda não te tinha convidado.

ADA (Passeando pelo espaço)
Não digas asneiras, Lilo. Gosto imenso do que vejo. Diz muito sobre ti.

LILO (Inquieto)
O quê? O que é que diz muito sobre mim?

ADA
Vê-se que é a casa de um artista. De um ser inquieto e intenso.

LILO
Dizes isso porque a casa está toda desarrumada. Isso é a tua maneira subtil de me dizeres que sou desleixado.

ADA (Falsamente zangada)
Estou a falar a sério, Lilo.

LILO (Muito doce)
Não te zangues, meu amor. Queres beber alguma coisa?

ADA
Não. Quero ver bem estas fotos. Há muitas que ainda não conhecia.

Ada observa atentamente as fotos, sob o olhar expectante de Lilo.

ADA
Encontraste, finalmente, o teu dom, Lilo. És um fotógrafo admirável. Pelo menos aos meus olhos.

LILO
Os teus olhos são o que mais me importa, Ada. Ter-te encontrado foi bem mais importante para mim do que a descoberta da fotografia.

ADA (Rindo)
Dizes isso porque estás apaixonado por mim neste momento, mas daqui a uns anos, nem te lembrarás da minha existência... Serás nessa altura um fotógrafo famoso.

LILO
És mesmo tonta. Achas que algum dia vou deixar de gostar de ti? Mais facilmente deixaria de gostar de mim...

ADA
O que tiver de ser, será. Mas uma coisa é certa, tens imenso talento como fotógrafo. Tiraste algumas destas fotografias comigo, como esta na praia, por exemplo, mas soubeste ver coisas que me passaram despercebidas.

LILO
Achas? O que essa fotografia mostra não é quase nada. É apenas uma pequena parcela do que vi naquele dia inesquecível e que procurei captar em vão.

ADA
Fotografar é excluir, com efeito, mas não é a vida também assim? Nós só vivemos uma ínfima parte dela. Só aproveitamos uma parte mínima das oportunidades que ela nos dá. Escolhemos um homem entre todos. Uma profissão entre tantas possíveis. E assim por diante.

LILO
Talvez por isso, há quem diga que a vida está toda na mínima fotografia.

ADA (Apontando para outra foto)
E estas duas mulheres a rir. Onde foi isto?

LILO
Foi lá em cima no Norte, durante uma feira. Foi algures na Beira Alta, nem me lembro do nome da aldeia.

ADA
A expressão da velha da direita é demais. E olha as mãos dela. Vê-me estas unhas. São literalmente unhas de fome. Agora é que entendo a expressão.

LILO (Rindo)
Eu só vejo o bigode e a barba. Nunca tinha visto uma mulher com barba!

ADA
Não há dúvida que sabes ir direito ao essencial, captar a essência dos momentos. Este olhar impressiona: pode ler-se nele a alma desta mulher... (Noutro tom) Gosto de ver estas fotos todas assim a monte.

LILO
Também eu. Em conjunto ganham outro significado. Algumas parece que se transformam. Se reparares bem, podes estabelecer sempre novas relações entre elas.

ADA
Pois é: se as imagens são boas, dialogam e multiplicam-se os seus sentidos.

LILO (Com um sorriso gozão)
Vê-se que estudaste filosofia...

ADA (Sorrindo também)
E tu vê-se que estás obcecado contigo próprio... Vê-me só a quantidade de auto-retratos!

LILO
Não me reconheço em nenhum deles. Como dizia o outro: hei-de fotografar-me até me reconhecer.

ADA (Rindo)
Quem disse isso?

LILO
Ninguém... Foi um pintor de rua que conheci.

ADA
A tua mãe havia de se orgulhar de ti, Lilo: sempre encontraste o teu dom. Algo que gostas de fazer e para o qual foste talhado.

LILO
E encontrei também a namorada que ela tanto desejava. Acho que ela havia gostar de ti... Não tanto como eu é certo.

Riem e beijam-se.

LILO
Afinal quem tinha razão foi o homem mais simples que conheci. Um calceteiro que entrevistei um dia. Com ele, e depois contigo, aprendi que que o maior dom é o de amar e, inclusivamente, de amar o que se faz na vida. Tudo o que fazes, profissionalmente ou não. Podes ser um criador de génio, o melhor engenheiro do mundo ou o patrão dos patrões, que sem esse amor e o amor de alguém não és nada. Pois se como pessoa não prestas, de que te valem os teus talentos ou o dinheiro? Graças a ti, Ada, tomei consciência de que o amor de uma só pessoa pode ser o maior tesouro do mundo. Quanto à fotografia, se queres saber não é assim tão importante. Adoro o que faço, mas não quero ser apenas um fotógrafo mais no mundo, um entre milhões de outros. Quero algo mais. Quero viver cada minuto da minha vida como se fosse o último e quero, quando chegar a minha hora, morrer em paz comigo mesmo. Quero não ter vergonha no fim da minha vida e saber que fiz tudo o que estava ao meu alcance para ser feliz e te ter feito feliz. Não concebo ambição maior do que esta.


ADA
Não tenhas pressa de morrer, Lilo, quando ainda nem sequer viveste. Tens tempo, meu querido. (Arrastando-o em direcção à porta) Vem, vamos lá fora almoçar. Hoje pago eu.

Saem e apagam-se as luzes.

FIM

terça-feira, outubro 04, 2005

Cala-me!

Peça em 15 cenas rápidas

1. Preâmbulo

No escuro, som de saltos altos em cima de um soalho de madeira. Primeiro devagar, depois mais depressa, sempre mais depressa. São duas mulheres que se perseguem. Mas não se vê nada. De repente, silêncio.
Entra Bernardo com uma vela e vai à procura delas. Quando as encontra, Rosa e Raquel estão caídas no chão, desamparadas e exaustas.
Rosa diz: É preciso correr.
Raquel responde: Não quero morrer mais.
Bernardo apaga a vela.
Música.

***

2. As Estrangeiras

Bernardo, sentado no chão, procura uma posição cómoda para escrever. Quando finalmente consegue ultrapassar a angústia da página em branco, entra Rosa, sensualíssima.
Rosa – Bonjour, comment ça va?
Bernardo (suspirando) – Tenho muita pena, mas não sei falar...
Rosa – Finalement vous voilá! J’ai rêvé de vous il y a quelques jours et je vous ai cherché partout... C’est trés romantique, vous ne trouvez pas?
Bernardo – Bolas, como é que te hei-de explicar que não percebo nada do que estás para aí a dizer? Não vês que estou ocupado a escrever? (Chateado, falando para si próprio) Ainda perco o fio à meada, e logo agora que isto me estava a correr tão bem...
Bernardo amarrota o papel que estava a escrever e deita-o fora com brusquidão.
Rosa (apanhando o papel amarrotado e guardando-o no soutien) – Ce n’est pas la peine de vous facher... C’est parce-que vous ne comprenez pas ce que je dis, c’est ça? Moi non plus je ne comprends rien de ce que vous dites lá... Et pourtant, dans mon rêve, on se comprennais parfaitement… Peut-être aprés tout ce n’est pas de vous que j’ai rêvé... Dommage. Vraiment dommage!
Rosa sai. Bernardo encolhe os ombros e recomeça a escrever.
Entra Raquel, também muito sensual, com um cigarro na mão por acender.
Raquel – Ei, how are you?
Bernardo (em sobressalto) – Outra? Mas de onde é que elas saem? Onde é que eu estou?
Raquel (insinuante) - I’m looking for a french girl. Did you see her?
Bernardo – Queres lume, é? Tenho muita pena mas não fumo.
Raquel (como se Bernardo já não estivesse presente) – It’s very important that I find her… She’s chasing herself.Raquel sai apressadamente.
Bernardo puxa do telemóvel e liga para um amigo.
Bernardo – Eh, pá, desculpa estar a chatear-te a esta hora mas não calculas o que está a acontecer. Nem vais acreditar... Aparecem-me gajas estrangeiras por todo o lado, já estou a começar a ficar assustado... Achas que é perigoso?Apaga-se a luz.

***

3. Os cruxificados

Raquel, Bernardo e Rosa estão deitados no chão com os braços abertos e as pernas em cima de uma cadeira. Parecem cruxificados, numa clara alusão a Jesus ladeado pelos dois criminosos. Durante todo o diálogo, Bernardo permanece silencioso.
Raquel – Eu acho que é de ti que ele gosta.
Rosa – Pois eu acho que é de ti.
Raquel – Não. Tenho a certeza que é a ti que ele quer.
Rosa – Não é.
Raquel – É.
Rosa – Ouve lá: e tu quere-lo?
Raquel – Eu não. E tu?
Rosa – Eu também não.
Riem as duas.
Raquel – Nesse caso, vamos fazê-lo sofrer um bocado.
Rosa – Como?
Raquel – Ora como? Precisas de lições para isso?
Riem novamente.
Rosa – É patético.
Pausa.
Rosa – Porque é que não gostas dele? Quer dizer... é giro e tudo.
Raquel – Giro é, mas também é muito convencido.
Rosa – Achas?
Raquel – Tu não achas?
Rosa – Se calhar tens razão.
Raquel – E tu? O que é que não gostas nele?
Rosa – Ele quer agradar demais para o meu gosto.
Raquel – Coitado, parece desesperado.
Rosa – É isso. Não achas isso suspeito?
Raquel – Suspeito?... Sim, suspeito. Percebo o que queres dizer.
Rosa – Achas que sim?
Raquel – Que sim, o quê?
Rosa – Que percebes o que quero dizer?
Raquel – Com isso do suspeito? Acho que sim. Se ele quer tanto agradar... se tem que se esforçar para isso, é porque algo não cola bem.
Rosa – Não cola bem? Está bem visto, é uma expressão engraçada.
Riem.
Raquel – Vamos então fazê-lo sofrer?
Rosa – Vamos.
Apaga-se a luz.

***

4. O Monólogo de Raquel

Raquel aperta a garganta a Rosa, enquanto procura enfiar o seu punho na boca da outra. Do tecto pende um microfone. Raquel ordena: Fala! Fala! Perante o mutismo de Rosa, faz-se mais agressiva: Diz qualquer coisa.
Rosa está frágil, quase chora. Mesmo assim, procura falar, sem que se perceba o que diz. Raquel insiste: Este é o teu momento. Aproveita-o. Agora. Grunhidos de Rosa.
Raquel (empurra Rosa com tanta força que ela cai no chão, depois dirige-se ao microfone) - Quando era pequena, mal saía de casa, descalçava os sapatos. Percorria as ruas com os pés nus. Liberta. Descalça, pensava que podia sentir a terra, a vida. Que tudo entraria na minha pele. (Noutro tom) Como eu corria e saltava... Pensava que as minhas pegadas ficariam gravadas no chão, no espaço... que nunca desapareceriam. (Pausa) É preciso que chova. Sim, para aclarar a vista. (Nova pausa) Agora... imóvel... quase imóvel. Apenas o movimento do fumo deslizando pelo meu corpo. Só no meu corpo. Que silêncio! (Rosa que rastejou até ela toca-a ao de leve na perna) Não me toquem. Não gosto que me toquem. Porque insistem? Estou farta. Não vêem que estou com pressa... que estou no fim. (depois de um silêncio mais prolongado) Quero ver como tudo acaba. Quero vingar-me das estrelas por tudo o que me prometeram. Quero manter-te vivo para ter sempre a possibilidade de te matar. Quero o teu nome. Quero fósforos para o caso de me querer queimar. Quero escrever sem ser vista lá do céu. Quero que regresses para acariciar as minhas cicatrizes. Quero que me vejas quando me estiver a afogar. Quero que saibas que eu sei. Que te vejo na escuridão. (Num sussurro) Estou a acabar. Não tenho medo... Só mais uma passa.
Apaga-se a luz.

***

5. A Cena do Vómito

Ainda no escuro, ouvem-se sons estranhos, como se alguém estivesse a sofrer. Entram Rosa e Bernardo empunhando lanternas eléctricas à procura da razão daquele barulho. Finalmente, descobrem Raquel que está a vomitar muito perto do público.
Rosa (apontando para Raquel com a lanterna) – O que é que ela tem?
Bernardo (aproximando-se para ver melhor) – Estará doente?
Rosa – Ela acordou assim.
Bernardo – Ela deitou-se assim.
Rosa – Ela é assim.
Bernardo (com nojo) – Limpa a boca, porca!
Rosa – Dou-te exactamente trinta segundos para parares com isso e limpares a boca.
Raquel continua a vomitar.
Bernardo – Limpa a boca, porca!
Raquel (depois de limpar a boca) – Ontem disse qualquer coisa que me fez mal.
Apagam-se as luzes

***

6. A Confissão de Bernardo

Rosa está sentada numa cadeira a ler. Entra Bernardo com uma cadeira na mão que vai colocar mesmo por detrás de Rosa. Bernardo senta-se de modo a espreitar por cima do rosto dela, procurando ler também.
Rosa (ao fim de algum tempo de silêncio) - Conte-me o que sabe.
Bernardo - Não sei nada.
Rosa - Diga-mo mesmo assim.
Bernardo - Mas se lhe estou a dizer que não sei nada.
Rosa - Sabe.
Bernardo - Não, não sei.
Rosa - Então deixe que eu também não o saiba.
Bernardo - Está bem.
Rosa - Como, está bem?
Bernardo - O que é que me quer obrigar a dizer?
Rosa - Queria partilhar algo consigo. Um segredo, talvez.
Bernardo - Um segredo?
Rosa - Sim.
Bernardo - Supondo que eu tivesse um segredo. Se lho contasse, deixaria de o ser.
Rosa - É por isso que eu quero saber.
Bernardo - Para quê?
Rosa - Seria uma prova de amor.
Bernardo - Mais uma?
Rosa - No amor são precisas sempre novas provas. Todos os dias. Várias.
Bernardo - Porque o amor pode morrer?
Rosa - O verdadeiro amor não morre. Não pode morrer.
Bernardo - Então para que precisa de provas?
Rosa - Porque é a natureza dele: para existir precisa de se ver.
Bernardo - E não é cansativo?
Rosa - Nada no amor é cansativo.
Bernardo - Essa agora!
Rosa - O quê?
Bernardo - Fazer amor cansa. Pelo menos a mim cansa-me.
Rosa - Não é a isso que me estava a referir.
Bernardo - Está a ver? Já lhe contei um segredo: fazer amor cansa-me.
Apaga-se a luz.

***

7. A Cena dos Sapatos

Uma sala cheia de sapatos. Quantos mais melhor. Sapatos de homem e de mulher. Bernardo caminha no meio deles, com alguma dificuldade. Está descalço. Movimenta-se de forma leve e suave, como se dançasse ou flutuasse. Contente, vai pegando nos sapatos com ar apreciativo. Finalmente escolhe uns para calçar. Em cada pé um sapato diferente. Num pé um sapato de homem, noutro um de mulher. Procura andar, mas coxeia. De repente, diz: Os nossos sonhos, se não os levarmos a sério, abandonam-nos.

***

8. A Dança

Bernardo e Raquel dançam, amarrados de costas um para o outro, com uma fita adesiva que diz FRÁGIL, em letras vermelhas.
Raquel (ao fim de alguns segundos) – Vá lá, liberte-me!
Bernardo – Se a libertar, você foge.
Raquel – Prometo que não fujo.
Bernardo – Foge.
Raquel – Não fujo.
Bernardo – Sabe, não sou tal como me vê. Na realidade, sou muito mais bonito do que isto. Por debaixo desta máscara está um homem muito interessante.
Raquel – Então, porque não a tira? Porque não me liberta e tira essa máscara desagradável?
Bernardo – Mesmo que quisesse, não o poderia fazer. Tal como nos contos de fadas, só um verdadeiro amor me permitirá ser eu próprio de novo.
Raquel – E está a contar comigo para isso?... Lamento desiludi-lo: não sou a mulher que procura.
Bernardo – Aí é que se engana. É exactamente a mulher dos meus sonhos. A prova, aliás, é que ainda esta noite sonhei consigo.
Raquel – Como é que isso é possível se ontem ainda nem sequer me conhecia?
Bernardo – É isso que é extraordinário. Não percebe?
Raquel – Então, está bem. Estou decidida a amá-lo. Pode desamarrar-me.
Bernardo – Dizer isso não ajuda nada. Só torna as coisas piores... Mas talvez seja isso que procure: tornar as coisas piores.
Raquel – Tem razão, não estou a ser honesta consigo... Diga-me então: que homem gostaria de ser, se não fosse um animal?
Bernardo – Está mesmo decidida a fazer-me sofrer, não é?
Raquel – Se quer que eu o ame, preciso de o conhecer. Saber o que pensa, o que lhe vai na alma.
Bernardo – O que me vai na alma? (suspiro) Pergunte tudo o que quiser.
Raquel – Que faz na vida?
Bernardo – Isso gostava eu de saber... Sei que perdi qualquer coisa e ando a procurar descobrir o quê.
Raquel – Como toda a gente, afinal.
Bernardo – Não quero dizer que sim, nem pensar que não. Prefiro viver este momento como se não passasse de um sonho.
Raquel – Que sonho? Do que é que está para aí a falar?
Bernardo – Preferia mudar de assunto, se não se importa.
Raquel – Então desamarre-me, está bem?
Bernardo – Só se prometer dar-me um beijo.
Raquel – O quê?
Bernardo – Preciso de um beijo.
Raquel – Que chato...
Bernardo – Preciso urgentemente de me alojar na sua saliva.
Raquel – Está maluco? Parece um cão vadio.
Bernardo – E sou...
Pausa.
Bernardo - Um beijo meu em troca da sua liberdade.
Raquel – Mete-me nojo. Deixe-me ir embora.
Bernardo – Só um... Só um... Só um... Quero sentir-me em casa.
Raquel – Dou-lhe um chocolate.
Bernardo – Quero morder os seus lábios.
Procura fazê-lo, apesar da dificuldade. Raquel procura afastar o rosto do dele, o mais possível.
Raquel – Cale-se, está descontrolado. Olha que eu... grito.
Bernardo – Eu também.
Raquel – Olhe que pode aparecer aí alguém.
Bernardo – Quer que a deixe ir embora?
Raquel – Bem sabe que sim.
Bernardo – Não. Só com um beijo.
Raquel (hesitante) – ... Não.
Bernardo – Sim ou não?
Raquel - ... Sim, está bem, mas não me deixe marcas.
Procuram beijar-se, mas amarrados de costas um para o outro é evidentemente impossível.
A luz apaga-se

***

9. A filmagem

Enquanto Raquel e Rosa conversam no meio dos espectadores, Bernardo filma discretamente as pessoas na plateia, com a função «night-shot» da câmara.
Raquel - Sonhei que andava a fugir. Passei a noite a fugir.
Rosa - De quem?
Raquel - Não sei. Não era bem de alguém, era mais de uma coisa, uma coisa terrível, já não me lembro o quê.
Pausa.
Raquel - Primeiro fugia pelas ruas. Depois, dentro de um palácio enorme, sem fim. Um labirinto de corredores, de escadarias, de salas.
Pausa.
Raquel - Por vezes, havia pessoas, grupos de pessoas, pelas quais eu passava a correr. Umas gritavam-me coisas que eu não entendia. Havia rostos ameaçadores. Havia também quem me ajudasse, que me indicasse qual o caminho a seguir. De repente, caí num poço, num buraco qualquer. Mas era macio, escorregava como por um tubo, caía sem me aleijar. À minha volta estavam montes de aleijados: pessoas sem braços, sem pernas, sem dentes, sem olhos, coisas assim.
Rosa - Que pesadelo!
Raquel - Acordei. Tive tanto medo que acordei.
Careta de Rosa.
Raquel - Claro que tive uma insónia. Depois daquilo já não consegui voltar a adormecer, já só consegui pregar olho de madrugada.
Rosa - Coitada.
Raquel - Não, olha, acabou por ser bom, comecei a pensar, nisto e naquilo, e tive uma ideia.
Rosa - Uma ideia? Que ideia?
Raquel - Isso não posso dizer. Não posso dizer já.
Rosa - Porquê?
Raquel - Porque ainda não sei se a ideia resulta.
Rosa - Não me queres sequer dar uma pista?
Raquel - Não. Dar-te uma pista era contar-te tudo. Percebias logo.
Rosa - E não queres que eu perceba?
Raquel - Para já, não.
Rosa - Então quando?
Raquel - Quando tiver a certeza que a ideia resulta.
Rosa - E se não resultar?
Raquel - É por isso que não te conto, porque pode não resultar.
Rosa - E qual é o problema?
Raquel - Não quero que penses mal de mim.
Rosa - Como assim?
Raquel - Não quero que penses que tenho ideias idiotas.
Rosa - Mas tu tens ideias idiotas! Essa ideia é idiota!
Raquel - Que ideia?
Rosa - Essa ideia de que posso pensar mal de ti por teres uma ideia que não resulta.
Raquel - Estás a ver? Tenho razão, já estás a pensar mal de mim.
Rosa - És completamente louca. Contigo é impossível conversar.
Saem.

***

10. Ruídos Mortos

Raquel e Bernardo conversam.
Bernardo – Detesto esperar!
Raquel - Quem espera não pensa. Se pensasse não esperava. A espera é uma espécie de pensamento congelado. Como uma dor. Uma obsessão.
Bernardo não responde.
Raquel - A espera é transparente.
Bernardo – O quê? Disseste alguma coisa? Está tanto silêncio que não consigo ouvir nada.
Raquel - Estou a falar sozinha.
Bernardo - É o costume, falas sempre como se estivesses sozinha.
Pausa.
Raquel – É porque não quero conversar.
Bernardo – Estou a ver.
Raquel – Não quero conversar, a sério que não quero conversar. É a última coisa que eu quero.
Bernardo – Pois a mim, apetece-me imenso conversar.... Nunca conversamos... e este parece-me o momento ideal para o fazer.
Raquel – Conversamos em breve, prometo. Amanhã. Ou depois de amanhã. Mas hoje não.
Bernardo – Então, o que é que queres fazer hoje?
Raquel – Calar-me. Quero estar calada. Quero ouvir o silêncio... Ouvir todos estes ruídos mortos à minha volta.
Bernardo – Mortos? Porquê mortos?
Raquel – Ouve, e vê lá se não estão mortos!
Silêncio. Muito tempo.
Bernardo – Isto faz-me lembrar uma sensação estranhíssima que senti ontem, quando estava na esplanada à tua espera. Eu estava ali, mas era como se não estivesse, porque ninguém dava por mim. Sabes como é, é como se fossemos invisíveis. Era como se só os meus olhos estivessem ali. E como se ninguém o soubesse. Ninguém me via, mas eu sim, via tudo. Queria ver tudo.
Antes que a Raquel responda, apaga-se a luz.

***

11. A história em segunda mão

Bernardo e Rosa entram empurrando dois carrinhos que suportam televisões, onde eles estão também, cada um na sua, em grande plano, fazendo caretas horríveis.
Bernardo - Há dias que tenho a cabeça tão vazia que parece que não mora ninguém cá dentro.
Rosa - Não mora ninguém, onde?
Bernardo - Aqui dentro da cabeça. Ou tu não tens a sensação de ser habitada por alguém?
Rosa - Não, não me parece que tenha algum hóspede. Já teria dado por isso.
Bernardo - Pois eu tenho um companheiro invisível.
Pausa.
Rosa – Conta-me uma história.
Bernardo – Uma história? Que história?
Rosa – Uma história qualquer. Tens tanto jeito para contar histórias...
Bernardo – Achas?
Rosa – Acho.
Bernardo – Que história é que eu já te contei?
Rosa – Tantas. Sei lá...
Bernardo – Diz-me uma.
Rosa – Não te lembras?
Bernardo – Não.
Rosa – Não te lembras de me contar nenhuma história? Não acredito!
Bernardo – Não, já te disse.
Rosa – Nem aquela história da mulher que vivia perseguida...
Bernardo – Não faço a mínima ideia do que estás para aí a falar.
Rosa – De uma mulher que vivia perseguida por si própria... espera lá, assim sou eu que vou contar a história e não tu. É o contrário do que eu queria.
Bernardo – Conta lá e cala-te.
Rosa – Conto ou calo-me?
Bernardo – Sabes bem o que eu quero dizer. Pára de dizer disparates e conta lá a história que eu te teria contado.
Rosa – Não faz sentido. Não faz sentido contar-te uma história que tu me contaste. Seria uma história em segunda mão.
Bernardo – Ora aí está um bom título para um livro: «Uma história em segunda mão».
Rosa – Provavelmente, já alguém o usou
.
Bernardo – Achas? Porque é que dizes isso?
Rosa – Parece-me um título demasiado óbvio para nunca ter sido utilizado. Sabes como é: hoje em dia é difícil ter uma ideia original. Já tudo foi feito, já tudo foi dito.
Bernardo – Já tudo foi inventado.
Rosa – Exactamente.
Bernardo – Não temos outro remédio, no entanto, senão continuar a viver como se tudo fosse possível ainda. Como se fossemos os primeiros habitantes da terra.
Rosa – Mais provavelmente seremos os últimos.
Bernardo – Tens razão, não perderia este momento por nada deste mundo.
Ambos riem.

***

12. Uma Única Palavra

Voltam Bernardo e Rosa com as televisões que os representam. Mas agora a conversa tem lugar no televisor. Os actores permanecem calados.
Bernardo - Por vezes, basta que me falte uma única palavra para eu já não conseguir dizer o que quero. Pior que isso, para eu já não saber o que quero ou o que sinto. Por vezes, uma palavra, uma única palavra, pode deitar tudo a perder.
Rosa – É por isso que há quem faça colecção.
Bernardo - Em vão. Pode possuir-se uma reserva imensa de palavras e mesmo assim não encontrar a palavra certa quando é preciso.
Rosa - Por mim, uso apenas palavras comuns. Palavras que não custam nada, que estão ao alcance de qualquer pessoa. Palavras como bom dia ou boa tarde, passou bem e já está.
Bernardo - Mesmo com essas palavras é preciso toda a cautela. O melhor é usar uma de cada vez.
Saem.

***

13. Monólogo de Bernardo

Bernardo dirige-se ao microfone, timidamente. Receoso. Respira nervosamente ao microfone. Olha o público de forma concentrada. Tenta captar cada pessoa no público através do olhar. Sente-se doente. Tenta respirar. Não consegue respirar normalmente.
Diz: Não consigo respirar.
Tira um cigarro e acende-o. Fuma como se o cigarro fosse o seu oxigénio. Respira através do fumo.
Bernardo – Hoje o meu corpo acordou mais cedo do que eu. Ordenei-lhe que continuasse na cama, colado à almofada, ao colchão e aos lençóis. «São sete da matina, porra!» Mas ele não quis obedecer. Nem se preocupou comigo. Ora essa, um corpo com vontade própria. Para ver se o voltava a adormecer, enrolei-me e abracei-o com força. Aninhei um pé no outro, juntei as mãos à cara e ao peito e procurei relaxar os sentidos. Desloquei-os para camas com lareiras e para prados enormes, bêbados de verdes e de sombras. Os olhos bem fechados. Mas ele, o corpo, estava de vigília. Bem desperto. Muito mais vivo do que eu. Foi ele quem sentiu o voo picado das pombas até ao canteiro da minha janela. Putas!
Não desisti. Tentei outra posição de sono. Virei-me para a parede, as mãos entre as pernas e a cabeça enterrada na almofada. Voltei a juntar os pés. Gosto disso. E permaneci assim parado durante algum tempo. Pude ouvir a vizinha de cima a fazer a sua higiene pessoal, o telemóvel a acusa falta de bateria, enquanto fingia dormir. Talvez o corpo tivesse sede. Falta de líquido nos sonhos. Servi imediatamente o conteúdo do copo que estava no chão do quarto.
Saciado de água, ele queria agora levantar-se. Espreguiçar os músculos, bocejar alto e saltar dali para fora para a pastelaria mais próxima. Isso é que era! Tinha planos bem definidos. Mastigaria muito bem disposto um croissant com queijo aquecido junto com leite com chocolate. Quente. Ele queria coisas quentes. E se era para continuar na cama que fosse para abraçar alguém intensamente. Calorosamente. Amorosamente. O raio do corpo queria outro corpo. Que caprichoso, o gajo. E vieram-lhe à memória hsitórias de amor queimadas, rostos, lábios, mãos beijadas e braços e pernas avulso. Estava bem capaz de cometer os maiores disparates para agarrar outro corpo. Para tocar noutro corpo. Naquele momento. Mas não estava excitado. Não era tesão que sentia, era solidão. Um apartamento de sentimentos despovoado de inquilinos. Que estranho.
O corpo queixava-se de solidão e eu queixava-me de sono. Afinal de contas, não tinha dormido quase nada. Isto não faz sentido. Não faz sentido. Os corpos não são feitos para pensar, nem para recordar e eu é que sei se quero dormir ou fazer amor com alguém. Porra! Será que se eu fosse paraplégico teria dormido melhor?


***

14. Os Espectadores no Ecrã

Com a sala às escuras, os espectadores aparecem no ecrã (filmados por Bernardo com o «night-shot»). Em off, ouve-se o seguinte diálogo:
Rosa – Se alguém capturasse uma imagem de mim, desprevenida, sem eu saber, e um dia mais tarde eu visse essa imagem e nela não me reconhecesse, continuaria a ser eu?
Benardo – E se, ao ver essa imagem, me reconhecesse nela, que parte de mim me teria ela roubado?
Rosa – E se um dia mais tarde, ao ver essa imagem, eu não me reconhecesse nela, que parte de mim me teria ela roubado?
Bernardo – E se ao ver essa imagem, me reconhecesse nela, continuaria a ser eu?
Rosa – E se ao ver essa imagem, eu te reconhecesse a ti, que parte de ti me teria ela roubado?

Bernardo – E se ao ver essa imagem, eu não te reconhecesse, continuaria a ser eu?
Rosa – Em ti ou na imagem?
Quando o filme acaba, acende-se um projector sobre um microfone de pé. Bernardo e Rosa aparecem, muito elegantes e dirigem-se ao microfone. Rosa tem um envelope na mão. O diálogo que se segue deve ser dito com largos sorridos e com todo o glamour das vedetas que vão anunciar os óscares.
Rosa - Diz-me Bernardo: sonhas por imagens ou por palavras?
Bernardo – Não é a mesma coisa?
Rosa – Não sei. É?
Bernardo – Não faço ideia. Sei que nos meus sonhos vejo coisas mas sem as ver e ouço sem ouvir. Mas é como quando penso: se penso na mimha avó, por exemplo, parece que a estou a ver, mas não estou. E quando estou a escrever, só vejo as palavras quando as escrevo. Não antes.
Rosa – Sendo assim, na tua opinião, nos sonhos não há imagens. nem palavras, mas é como se as houvesse. É isso?
Bernardo – O que é uma imagem? O que é uma palavra? Pensando bem...
Rosa – Pensando bem, o quê?
Bernardo – É como o outro dizia: a vida é um sonho.
Rosa – Não existe realmente, é isso?
Bernardo – O que é a realidade para alguém que já morreu? Ou para alguém que ainda não nasceu?
Rosa – Dá-me uma vertingem só de pensar nisso.
Bernardo – Pois, e não é para isso que aqui estamos.
Rosa – Pois não, vamos lá ao que importa, está toda a gente à espera.
Bernardo (enquanto Rosa rasga o envelope) – E o prémio de melhor sonhador vai para...
Rosa (lê o papel e diz com grande alegria, apontando para o meio da sala) – Para aquele espectador ali, na quarta fila!
A luz apaga-se, de repente.

***

15. Os Aquários

Bernardo, Rosa e Raquel entram carregando grandes aquários cheios de água. Colocam-nos no chão e ficam de joelhos observando-se mutuamente. Depois, um deles faz um sinal e os três mergulham a cabeça dentro do aquário, procurando ficar lá dentro mais tempo do que os outros.
Raquel (Quando já todos tiverem tirado as cabeças de dentro de água) – Então?
Rosa – Eu vi-me a mim própria no futuro, daqui a 15, 20 anos, não sei... e não gostei nada do que vi.
Raquel e Bernardo (ao mesmo tempo) – Porquê?
Rosa – E vocês?... Sentiram alguma coisa?
Bernardo – Eu lembrei-me de algo que já tinha esquecido.
Rosa e Raquel (ao mesmo tempo) – O quê?
Bernardo – Ninguém gosta de mim!
Rosa e Raquel riem.
Bernardo – Não vejo onde está a piada.
Raquel – Então, Rosa, afinal que viste tu?
Rosa – E tu? Ainda não disseste o que sentiste!
Bernardo – Pois, tu ainda não disseste.
Raquel (depois de muito hesitar) – Fiquei com o desejo de experimentar morrer... Fiz uma descoberta terrível: tive prazer no meu medo.
Bernardo – Prazer?
Rosa – No medo?
Raquel – Sim. Toda aquela água à minha volta, a escuridão... o silêncio... senti medo e logo... assim como que uma sensação de doce abandono.
Rosa (quase chocada) – Porque é que tu tens sempre que sentir coisas melhores do que eu?
Bernardo (rindo) – Se calhar porque tem mais imaginação.
Raquel volta a mergulhar a cabeça no aquário. E os outros dois imitam-na.
Apaga-se a luz.

FIM